A imagem mostra a vista do Aglomerado da Serra, visto da descida da Av. do Cardoso. A paisagem mostra a pista em primeiro plano e ao fundo as casas do aglomerado.

VEM PRO SERRÃO QUERIDA

O Baile da Serra e a luta cotidiana por identidade e diversão.

TEXTO
Amanda Corradi
FOTOS
Alexandre Guzanshe e Juliana Afonso

O Aglomerado da Serra é o maior conjunto de favelas de Minas Gerais. Considerado um território rico em manifestações artísticas, é uma importante referência para a cidade de Belo Horizonte. Com mais de 120 mil habitantes, traz na sua história uma efervescente e diversa produção cultural, abrangendo diferentes segmentos. A soul music, o samba e o pagode movimentam há décadas a cena local, com grupos de artistas e também com eventos. Ao longo dos anos, outros gêneros ganharam destaque, como o forró, o rock, o rap, o hip hop, o gospel, o miami bass e o funk. Todos eles fazem parte da identidade, da cultura e das vivências deste território.

Oito vilas compõem o Aglomerado da Serra. Oficialmente conhecidas como Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora Aparecida, Santana do Cafezal, Novo São Lucas, Fazendinha e Marçola, as vilas também receberam outros topônimos ao longo do tempo, como Arara, Pau Comeu, Caixa d’Água, Del Rey, Café, Favelinha, Baixada e muitos outros.

As ruas, os becos e as vielas do “Serrão” são palco das mais diversas histórias, que são construídas diariamente pelos seus moradores. Dentre tantas tramas existentes neste território, o funk é o ritmo que tem ganhado espaço e expressão, dentro e fora da favela. E um dos espaços de grande relevância do funk dentro do Aglomerado é o Baile da Serra, que traz consigo, além da forte essência artística, a criação de vínculos, conexões e o fortalecimento da comunidade.

O funk ao longo dos anos

“Sou filho da Dona Márcia, neto da dona Neusa e filho do senhor Rufino”. Assim se apresenta o DJ Marcelo Mattos, 38 anos, nascido e criado no Aglomerado. Além de ser artista e um dos produtores do Baile da Serra, é também um líder comunitário: “Eu gosto demais de morar aqui, e é onde todo mundo sabe da minha vida. Todo mundo me conhece. Aqui é onde eu sou feliz”.

Considerando a agitação cultural presente na história do Aglomerado, Marcelo não tem dúvidas ao afirmar que a potência de Belo Horizonte e de Minas Gerais está na Serra. Os eventos de funk no território começaram a se estabelecer por volta dos anos 1990. Nesta época, os moradores faziam o “som”, nome dado às festas que aconteciam de maneira espontânea, e que posteriormente ganharam o nome de “baile funk”, onde as pessoas se aglomeravam ao redor de caixas de som para se divertir.

A partir de 2003, o gênero se fortaleceu ainda mais através da Rádio Favela, onde Marcelo trabalhava. Inicialmente, o DJ era responsável pela programação de pagode e, posteriormente, assumiu também a programação de funk, dando início à sua trajetória no gênero musical.

Rádio Favela é como é conhecida a Rádio Autêntica Favela FM. É uma rádio comunitária, que entrou no ar em 1981, na Vila Nossa Senhora de Fátima. Desde sua origem teve grande importância na divulgação da música e da cultura na comunidade, além de denunciar as discriminações e os problemas vividos pela população. A rádio resistiu às perseguições políticas e policiais e, após mais de duas décadas funcionando de maneira pirata, no ano de 2002, foi reconhecida com uma outorga verbal do Ministro das Comunicações. No ano de 2007, a rádio recebe a outorga definitiva de funcionamento. O filme Uma onda no ar (2002), dirigido por Helvécio Ratton, foi baseado na história da Rádio Favela.

A imagem mostra uma criança de costas sobre uma laje em primeiro plano. O menino está com as mãos no rosto, protegendo os olhos do sol e observando a cidade, numa vista panorâmica.
Foto: Juliana Afonso.

Nesta época, surgiu o baile da Praça da Lira, na Vila Santana do Cafezal, realizado aos finais de semana. Foi criada também uma matinê na Escola Municipal Senador Levindo Coelho, próxima à estrada da Ferrobel, no Parque das Mangabeiras. “A gente fazia o funk e as mães não deixavam ir porque era de noite, aí começaram a pedir na Rádio pra fazer uma matinê pra quem era de menor. Começava às 15 horas e terminava às 21 horas, porque às 22 horas todo mundo já tinha que estar em casa”, conta Marcelo.

A matinê era um evento para crianças e adolescentes de até 15 anos. Na entrada, era pedido um quilo de alimento não perecível, que era destinado para a própria escola. A diretora utilizava as doações para complementar a merenda escolar ou repassava diretamente às famílias. Pouco tempo depois, o baile se mudou para a Creche Dona Quita Tolentino, na Vila Santana do Cafezal, e acontecia às quintas e sextas-feiras. Marcelo cita diversos DJs que estiveram presentes nesse momento: “DJ MP3, DJ Coladinho, DJ Norinho. Aí começou a aumentar a família. Alexandre, Lulu, DJ Neném…”.

Os eventos seguiram nos anos de 2004 a 2006, com as arrecadações e os bailes divulgados pela rádio comunitária. “Antigamente não tinha alvará, não tinha nada. Você podia parar seu carro, colocar o som na rua e fazer o baile”. Até então, os bailes tinham como frequentadores principais os moradores do próprio Aglomerado.

Por volta de 2005, Marcelo e outros DJs do Aglomerado ganharam reconhecimento e começaram a sair da Serra para trabalhar com a música. A rotina de eventos era sempre a mesma: sexta-feira e sábado no Aglomerado, e domingo em uma casa de shows chamada Cocobongo. Essa conexão na Cocobongo proporcionou aos DJs de BH conhecerem artistas de outros estados.

“Os artistas que iam cantar lá no domingo vinham para o fim de semana. Eles cantavam aqui [na Serra] no sábado e lá [na Cocobongo] no domingo. Cantavam de graça pra favela no sábado e cantavam ganhando no domingo. Foi quando a favela começou a ficar muito forte e o funk começou a ficar desse jeito”, relembra Marcelo.

A casa de shows Cocobongo marcou época em Belo Horizonte nos anos 2000, trazendo apresentações de artistas nacionalmente conhecidos. Atualmente, não está mais em funcionamento. Localizava-se à época na Rua dos Goitacazes, n. 1.361, bairro Barro Preto.

A imagem mostra uma das edições do Baile da Serra. Uma edição noturna e ao ar livre, é possível ver a multidão que frequenta o baile. Ao fundo está o palco
Foto: Alexandre Guzansche.

Conflito no território, comunidade reunida

Por volta de 2009, os eventos começaram a ganhar mais destaque e mais público. “A gente começou a fazer uns bailes nas praças que foram abertas”, afirma Marcelo, em referência ao Programa Vila Viva, que aconteceu entre 2004 e 2011. O programa foi composto por um conjunto de ações que englobava obras de saneamento, reestruturação do sistema viário, urbanização e regularização fundiária. Para realizar a abertura de ruas e outras ações estruturais, a Prefeitura de BH acabou removendo centenas de famílias das suas casas, afastando parentes e amigos do convívio diário e coletivo.

Um dos espaços que passou a receber os mais diversos tipos de eventos após sua implantação foi a Praça do Cardoso. Em um deles, no ano de 2017, aconteceu um tiroteio no local, o que motivou a polícia a impedir a realização de eventos no Aglomerado. Os bailes aconteciam todo domingo na Praça, sem a necessidade de alvará, mas, após o ocorrido, os organizadores começaram a ter de emitir o documento – ainda assim, nem sempre conseguiam realizar o evento.

Foi aí que o baile mudou de local. Marcelo Mattos e Cristiane Pereira (a Kika), que já produziam várias festas, como o Baile do Serrão e o Baile do Arara, passaram a produzir o Baile da Binário, na rua de mesmo nome. Inicialmente, ele acontecia todos os domingos, das 15 às 22 horas. Doze edições aconteceram sem problemas. Na 13ª, porém, um adolescente de 14 anos foi assassinado durante uma intervenção policial.

“Houve mobilizações por causa da morte desse adolescente de 14 anos, o Gabriel. A favela desceu pra Praça Sete pra falar sobre a violência policial que acabou tirando a vida de mais um jovem negro”, lembra Danny Mendes, moradora do Aglomerado, mestra em Administração, gestora do Lá da Favelinha e frequentadora do Baile da Serra.

Após a intervenção policial, os moradores se organizaram e criaram o Observatório do Funk, para dar suporte à galera”, explica Danny. O Baile foi reformulado e tornou-se o primeiro de Minas Gerais a obter um alvará de funcionamento. No início de 2018, por meio de votação popular, o evento recebeu o novo nome: Baile da Serra.

“Depois a gente começou a ser demandado por outras pessoas da área da cultura que trabalham com movimentos periféricos que também sofrem repressão do Estado. Daí a gente transformou o Observatório do Funk em Observatório das Quebradas, para incidir em outras quebradas e outras formas de cultura da periferia”, conta Danny. Hoje, o coletivo não trabalha apenas com emissão de alvará, mas com auxílio na área da cultura, ministrando workshops, consultoria e realizando outras atividades.

A imagem retrata uma mulher jovem, de batom avermelhado e cabelo liso. Não é possível ver seu rosto por inteiro. Ela veste uma blusa preta e está apontando para a sua camisa, onde está escrito Baile da Serra.
Foto: Alexandre Guzansche.
A imagem mostra um rapaz dançando em primeiro plano, em uma das edições do Baile da Serra. Não é possível visualizar seu rosto com nitidez, pois foi capturado em movimento, e seus braços aparecem borrados. É um evento noturno, e ao fundo é possível visualizar outros participantes do evento.
Foto: Alexandre Guzansche.

O racismo e o preconceito com o funk na Serra

Em 2018, o Baile começou a ser itinerante. Algo interessante aconteceu: naquele ano, não houve nenhum assassinato por arma de fogo no Aglomerado. “A gente percebeu que o Baile era um instrumento de brecar violências. Ele distribuiu recursos econômicos na favela porque ele gera uma série de outros trabalhos”, afirma Maíra Neiva, doutora em Direito pela PUC Minas e advogada do Baile da Serra. “Aí gerou outra problemática: quando a PM percebeu isso, ela passou a dificultar os alvarás”, complementa.

O alvará é compreendido como uma solução paliativa para a tensão existente com as forças policiais, uma vez que, concedida essa autorização, a polícia não pode mais invadir o baile ou agredir física e verbalmente os participantes. A comunidade não está acostumada com a presença da PM e sente que a instituição atua no local com preconceito. “A gente tem medo da polícia, ela desperta diversos gatilhos na gente. Então como que a galera vai se divertir no baile com PM de fuzil na mão? É impossível. Esse era um dos combinados na mesa de negociação: eles estariam ali, mas acompanhando de longe para que o público pudesse se divertir”, explica Danny.

Os organizadores relatam que, além da dificuldade em obter o alvará, a polícia chegou a tentar censurar as músicas. “Queriam censurar as letras das músicas, usando como argumento o feminismo branco, querendo caracterizar como apologia a estupro. Depois começaram a exigir umas coisas impossíveis, tipo passeio de tantos metros. Aonde que tem passeio dentro de uma favela? A polícia abusou do seu poder e criou critérios pra concessão de alvará que não existem na legislação”, denuncia Maíra Neiva.

Foi preciso então mudar de estratégia. A alternativa foi usar o direito de concorrer aos editais. Além da Virada Cultural, realizada em julho de 2019 com recorde de público, atraindo cerca de 100 mil pessoas, o Baile da Serra também teve uma edição embaixo do Viaduto Santa Tereza, em dezembro de 2017. “Nós fizemos um baile debaixo do Viaduto, a mesma putaria que a gente toca aqui tocou lá. A primeira exigência que a gente fez foi a seguinte: vocês querem o Baile da Serra, não querem? Então nós não vamos inibir ninguém de tocar nada não. O que nós tocamos na favela a gente vai tocar aqui. E rolou. O negócio é o local. O negócio é o racismo que tem, essa é a verdade”, afirma Marcelo.

E quando tem o baile, a renda da favela é muito forte, movimenta demais. Porque é o cara que vai ali comprar roupa, é a menina que vai pro salão fazer a unha, o cara que vai cortar cabelo, os cara que chega mais cedo e vai comprar o uísque, a cerveja... é um giro da favela muito forte e todo mundo gosta.

O Baile da Serra conseguiu se manter com os editais: eram três a quatro edições por ano até as atividades serem paralisadas por conta da pandemia da Covid-19. A interrupção das atividades agravou a violência na favela. “O baile brecava a violência policial porque a gente era uma personagem política que denunciava os abusos. Agora não tem isso. Então o que a gente está vendo é o aumento da violência, agravado pelo crescimento da pobreza”, relata Maíra Neiva.

A imagem retrata um cabeleireiro em um salão de beleza do aglomerado fazendo um corte em uma cliente.
Foto: Juliana Afonso.
A dinâmica do Baile da Serra

O Baile da Serra é referência em Minas e no Brasil quando se trata de funk. Além da sua importância histórica e cultural, é um dos maiores bailes com alvará de funcionamento no país. O evento conta com estrutura de palco, jogo de luz, som, artistas de destaque local e nacional, e uma equipe organizada por função para fazer acontecer.

“Tem uma equipe, cada um na sua área, cada um na sua função. O baile antigamente era mais focado nos homens, hoje em dia a maior potência do baile são as mulheres. Tem a Kika, que é o nosso braço fiel, que vai atrás do alvará, que sempre vai em reunião com PM, Bombeiros, BHTrans, Prefeitura. Ela sempre tá nesse corre e todo mundo da área do funk gosta dela. Tem a Maíra [Neiva], nossa advogada, tem a Danny [Mendes], que é uma mulher muito forte que tá com a gente e auxilia nos projetos. Eu fico como apresentador de palco. Eu sou o cara que faz o baile não parar de jeito nenhum”, conta Marcelo.

Quando o Baile da Serra virou itinerante, a organização passou a fazer um contato prévio com a vizinhança uma semana antes do evento. “O pessoal da igreja conversa com o pessoal do rap, do samba, até porque tem que ter esse respeito. Todo mundo se conhece. O pastor da igreja é vizinho da gente, todo mundo mora perto, não tem como não ser amigo um do outro. Época de culto a gente procura não fazer baile em porta de igreja, pra não atrapalhar. É tudo conversado”. Um dos pontos mais importantes do evento é a sua capacidade de geração de renda para a comunidade. São os próprios moradores e moradoras que vendem as bebidas e comidas no dia da festa. Essas pessoas, por sua vez, colaboram com uma quantia para a organização pagar o trabalho dos técnicos (como operador de luz, montagem de palco, segurança) e artistas.

O comércio local é fortalecido dias antes do evento: as lojas, as marcas de roupa e os salões de beleza são procurados pelas garotas e pelos rapazes que querem se produzir. “O que tem de alegria é que o cara trabalha de segunda a sexta pensando no final de semana. ‘Vou pro bailão’, o cara já trabalha pensando nisso. E quando tem o baile, a renda da favela é muito forte, movimenta demais. Porque é o cara que vai ali comprar roupa, é a menina que vai pro salão fazer a unha, o cara que vai cortar cabelo, os cara que chega mais cedo e vai comprar o uísque, a cerveja… é um giro da favela muito forte e todo mundo gosta. É o lazer da juventude”, descreve Marcelo.

A imagem retrata o DJ Marcelo Mattos sobre o palco, de costas, em primeiro plano. Marcelo é um homem negro, e está vestido na foto com uma calça jeans, uma camisa de manga comprida na cor preta e tênis na cor bege. Ele está falando ao microfone, segurando com a mão direita, e o braço esquerdo está levantado apontando para cima. A sua frente está uma multidão, na Praça da Estação. É possível ver alguns guarda-sóis e barracas de apoio ao evento. Ao fundo é possível ver as edificações do entorno da Praça da Estação.

Marcelo Mattos, mestre de cerimônias na edição do Baile na Praça da Estação.

O cuidado com o visual atravessa idade e gênero. “Tem homem fazendo unha e pintando o cabelo para ir ao baile, coisa que o asfalto não consegue compreender. Existe uma estética que é típica do baile funk e ela movimenta muito dinheiro na quebrada”, complementa Maíra.

Existe uma preocupação em não repetir os mesmos artistas entre uma edição e outra. Outra questão levada em conta pela equipe é dar oportunidades a quem está iniciando a carreira. Marcelo conta que, dentro da programação de um mesmo dia, também existe a estratégia de inserir artistas com nome já conhecido com outros que estão no início da carreira. Nos bailes que acontecem à noite, das 22 horas até a manhã do dia seguinte, a organização prevê cerca de 10 shows. Já os bailes que acontecem durante o dia, das 15 às 22 horas, a programação é feita com até 5 artistas, com aproximadamente 45 minutos de show para cada um. Desta maneira, todos ganham visibilidade.

Apesar de toda a programação, Marcelo dá o seu toque especial nos eventos, mudando e complementando o roteiro preestabelecido. “Por exemplo, tem os cinco artistas que vão tocar no dia, mas se eu fizer só aquilo ali não vai ser eu. Eu mudo é tudo. Eu vejo que tem uma pessoa que sabe cantar, que me falou que quer cantar e tem talento, eu chamo pro palco. A Kika fica doida comigo. É ela quem toma conta de mim no palco”, se diverte.

A imagem mostra MC Mika posando para a foto. Ela é uma mulher branca, está vestida com um short jeans na cor azul e um biquíni com o top na cor rosa. Ela tem os cabelos cacheados, com algumas luzes, e tem um penteado deixando parte do cabelo solto e dois pequenos coques no topo da cabeça. Ao fundo é possível visualizar uma parede com pichações e grafites.
Foto: Mc Mika.
MC Mika e o funk de BH

Uma das revelações que teve a oportunidade de subir pela primeira vez aos palcos no Baile da Serra é a MC Mika. Esse é o nome artístico de Miquele Felício, 23 anos, que veio ainda criança de São Luís do Maranhão para Belo Horizonte. Sua iniciação na área musical foi cantando no coral da igreja evangélica que frequentava durante a sua infância. Ela teve seu primeiro contato com o meio artístico do funk através da participação em gravações de videoclipes. Os trabalhos foram feitos sem que soubessem que ela cantava. Quando seu talento foi revelado, MC Mika se tornou integrante da Tropa do 7LC.

“Eu comecei a cantar funk e fazer MTG [montagem] e surgiu a oportunidade de fazer um show num baile funk na Serra. Isso foi em 2018. O Marcelo e a Kika fizeram um baile funk beneficente na rua da ACM Cafezal[Associação Comunitária de Moradores da Vila Santana do Cafezal], lugar onde o Marcelo trabalha. Aí eles fizeram um show e convidaram a gente. É uma tropa né, a Tropa do 7LC”, conta MC Mika. Os músicos foram fazer o show juntos e, nesse evento, ela teve a oportunidade de cantar a música que tinha feito com eles.

A Tropa do 7LC é uma produtora de Belo Horizonte criada em 2018 e que, desde então, revelou grandes nomes da cena do funk em BH, como o MC Vitin LC, DJ Cayoo, MC Laranjinha, MC Mika (a primeira mulher na produtora), MC VH Diniz e outros artistas. Inicialmente, a produtora trabalhava exclusivamente com o funk, mas hoje ela tem expandido sua atuação e vem trabalhando também com o trap e brega funk.

A imagem mostra o DJ Marcelo Mattos e a Kika abraçados. Eles estão sobre um palco e ao fundo é possível ver a estrutura de <i>show</i> com caixas de som, e parte de um telão.  Marcelo e Kika estão de frente, e Marcelo está com o braço esquerdo sobre o ombro da Kika. Eles estão com a cabeça encostada uma na outra. Ambos estão com óculos escuros, e Marcelo veste uma calça e uma blusa de manga comprida na cor branca e Kika está com calça jeans e uma camisa de manga curta escrito Baile da Serra. Na mão direita Marcelo segura um microfone.

Foto: DJ Marcelo Mattos e Kika, produtores do Baile da Serra.

MC Mika lançou o clipe da música “Ele é Magrin”, gravado no Centro Cultural Lá da Favelinha. Foi sua primeira música de sucesso. Sobre a criação das músicas, ela conta: “Aqui em BH a gente costuma fazer o seguinte: normalmente, todas as letras minhas sou eu mesma que escrevo. Esse processo de criação a gente chama de projeto. A gente chama o DJ, junta todos no estúdio e aí o DJ começa puxando a melodia, que é o beat. Aí forma o beat de BH, uma coisa mais arrastada. Aí a gente procura o tema, do que a gente vai falar, e começa a escrever.”

Sobre o conteúdo e a temática das letras, ela revela ter sido um processo gradual até chegar a cantar letras com putaria. Como veio de um meio religioso, essas etapas foram importantes para sua família ser receptiva com a sua carreira e ela mesma se adaptar.

“Eu comecei a fazer umas músicas mais tranquilas. Quando eu fiz minha primeira música eu achava que ia mudar minha vida, que ia estourar. Era uma música acústica, linda e tal, só que não era para ser no momento. Então não teve a repercussão que eu imaginei. A música se chama ‘Fala comigo BB’, e era o estilo de música que eu queria cantar na minha carreira. Aí eu comecei a andar na minha produtora com os meninos e eles começaram a falar: ‘Olha, começa a fazer umas de duplo sentido. Na hora que você tiver com seu nome na pista você faz o que achar melhor, mas agora vamos fazer o que vai dar certo’. Aí comecei a fazer de duplo sentido”, conta.

O Centro Cultural Lá da Favelinha se localiza na Vila Novo São Lucas e é uma iniciativa sem fins lucrativos que surgiu em 2015. A organização, fundada e coordenada pelo artista Kdu dos Anjos, é um espaço comunitário, cultural e de formação profissional, que atende, principalmente, crianças e jovens da comunidade. Além de promover oficinas variadas, conta com uma biblioteca, promove eventos e desenvolve projetos socioculturais.

Em 2018, a cantora descobriu um câncer e precisou se afastar das tarefas cotidianas para se recuperar. “Eu estava com câncer nos seios e precisava fazer a cirurgia. Eu tive que sair do meu trabalho fixo e ficar um tempo em casa, me recuperando, até começar a procurar outro serviço. Aí eu falei com minha família: ‘eu preciso de quatro meses. Se em quatro meses o que eu tô tentando agora não der certo, não der resultado, eu paro’”.

Foi neste intervalo de quatro meses que a sua carreira musical decolou. Neste período, Mika subiu aos palcos do Aglomerado da Serra pela primeira vez e viu sua música fazer sucesso. “Nesses quatro meses ainda não estava dando dinheiro, mas estava dando resultado. Quando minha família começou a ver meu Instagram crescendo, com milhares de fãs, me reconhecendo na rua, aí começaram a me dar credibilidade. Viram que realmente não era brincadeira, era coisa séria”.

As redes sociais e plataformas online são importantes meios de divulgação e fortalecimento do funk de BH, principalmente após o início da pandemia, quando a possibilidade de realizar shows presenciais foi reduzida. Os artistas locais e o Pique BH são referência e influência para outros estados, como São Paulo e Rio de Janeiro. Com as músicas, clipes e coreografias, Belo Horizonte tem se destacado na cena nacional. “O pessoal todo tá com os olhos virados pra cá. Hoje toca nas festas aquilo que tá tocando no TikTok, e não o contrário. Então a gente faz música no estúdio hoje já pensando no TikTok”, conta a MC.

Sobre ser uma cantora de funk, Mika conta como é difícil ser mulher neste meio artístico e que foi preciso vencer muitos obstáculos. O principal foram os julgamentos e preconceitos que costumam desestimular muitas mulheres a continuarem na carreira. “Se você não se conhecer e saber quem você é de verdade, você vai acabar acreditando ser aquilo que os outros falam. Então é importante o autoconhecimento e a autoconfiança, sabe?”.

MC Mika sempre teve a música como parte elementar de seu dia a dia. O contato com o funk aconteceu de forma orgânica e mostrou a ela como esse estilo musical era capaz de abraçar a realidade de sua comunidade. “Tem as dificuldades como em qualquer tipo de aglomerado, mas a favela não tá preocupada se você é gay, se você é lésbica, se você é rica, se você é pobre. Tá todo mundo ali junto, sendo feliz, querendo curtir, se divertir. O funk mostra a realidade mesmo”. Tendo essa verdade como ponto de partida, MC Mika tenta imprimir em suas músicas a realidade do aglomerado, da favela, da simplicidade e da humildade presentes neste mundo.

Pique BH é como é chamada a batida característica criada em Belo Horizonte, com um ritmo mais lento e bastante melódico, variando de 90 a 130 bpm e com elementos agudos em sua estrutura. O título desta matéria foi inspirado em uma música que faz parte do Pique BH: “Vem pro Serrão, querida”, de MC Flavinho, MC Kitinho e DJ LG do SF.

“Além de mudar a minha vida, está mudando a vida de muita gente, não só por cantar, mas também por outros caminhos. Ela tem oportunidade de trabalhar com produção em eventos. O Marcelo Mattos e a Kika dão muita oportunidade pro pessoal da comunidade. Eu comecei a entrar lá, entregando cesta básica com o Marcelo Mattos na Associação, foi onde o pessoal começou a me conhecer mesmo e viu que estava fazendo funk”.

Se nos anos 1990 as letras registraram o preconceito e a criminalização sofrida por quem fazia e curtia o funk, como no clássico "Rap do Silva", no qual o protagonista “era funkeiro, mas era pai de família” – como se fosse preciso justificar a própria índole por conta do gosto musical – hoje elas repetem com orgulho: “respeito para os que vêm, favela vai vencer”. O funk não tem volta.

As comunidades e as periferias ainda são alvo de muito preconceito dos que insistem em tachar a favela como espaço de pobreza e violência, e só. Pois é com iniciativas artísticas e culturais como o funk que a favela prospera. Os bailes não são apenas eventos: eles movimentam os comércios, os serviços e uma série de ações sociais. É uma ferramenta de transformação. E um testemunho de identidade.

A imagem mostra em primeiro plano três garotas dançando funk. Elas estão com a mão no joelho, vestindo short jeans e blusas curtas e tem cabelo liso. Em segundo plano é possível ver de maneira desfocada outras pessoas que estão participando do baile. É uma foto noturna.
Foto: Alexandre Guzansche.
MELHORES MOMENTOS

Marcelo Mattos: “Uma vez a Mulher Melão veio aqui na Praça do Cardoso. Ela colocou um telefone nas partes íntimas dela e mandou o cara puxar. E o cara ficou puxando e chamou outro pra ajudar e não conseguiu (risos). Já vi de tudo nesse baile. Quando tinha o baile do Mariano, misericórdia, ali era o verdadeiro inferninho.”

MC Mika: “A melhor memória que eu tenho foi do dia do show mesmo que eu tive. Eu cheguei lá e não imaginei que seria daquela forma. Eu era simplesmente uma menina normal que tinha feito uma música com a galera. A rua estava lo-ta-da. Era um baile beneficente que tava rolando, um show de várias pessoas. Aí na hora que foi o meu show com os meninos, eu fiquei quietinha em cima do palco. Quando eu comecei a cantar, todo mundo cantou junto! Eu fui e não aguentei, parei de cantar, fiquei em choque. A galera continuou cantando. Eu parei, olhei pros meninos que tavam em cima do palco e eles falaram: ‘véi, estourou, a música explodiu!’ Aí eu pensei ‘não tô acreditando’, e voltei a cantar, felizaça. Eu não tava me cabendo dentro de mim. No outro dia eu tava voltando lá pra já gravar o clipe da música.”

Danny Mendes: “Foi em um dos Bailes da Copa [do Mundo], que a gente fez nos Coqueiros, um baile itinerante de uma das quebradas aqui. Eu lembro que não tinha transporte na favela porque tava todo mundo em casa vendo jogo, e eu tive que andar quilômetros pra chegar no baile. O Brasil perdeu nesse dia e ficou todo mundo de-so-la-do, porque assim, a gente montou um palco e colocou um telão para transmitir, e aí esse dia foi muito engraçado porque ficou todo mundo triste. O Coladinho colocou um sertanejo para fazer teste de som e aí a gente pensou ‘nó, que bad, ninguém vai descer pro baile’. Na hora que o Coladinho tirou o teste e tocou o primeiro funk, surgiu gente de todo canto e isso me marcou muito. A gente tinha colocado essa estrutura, do telão, mas tava tão cheio, tão cheio, que teve que tirar. Virou um palco 360 e o MC Pkzinho cantava pros dois lados. Esse dia foi incrível!”

Maíra Neiva: “Com certeza a Virada Cultural, na Praça da Estação. Mais de 100 mil pessoas e nenhuma ocorrência policial. Nenhuma. Zero. Maior baile funk do mundo com alvará da Prefeitura de Belo Horizonte sem nenhuma ocorrência policial. Isso pra mim é a prova mais cabal que racismo é a coisa mais escrota da face da Terra. Afasta aquela lógica de que se tiver festa pra povo preto vai ter violência, que é um estigma do racismo, que vai atingir principalmente os homens negros, mais do que as mulheres. A segunda prova pra mim é a comprovação que o papel exercido pelo MC é um papel político e conecta a gente com aquela África da qual a gente foi sequestrado, porque na cultura banto a música é também um grande discurso político. Eu acho que isso é importante demais, faz parte da nossa cultura afro-brasileira. E também serve pra mostrar para o Estado o quanto favelado é bom naquilo que faz.”

A imagem mostra uma barraquinha com venda de comida no Baile da Serra. É uma foto noturna, onde é possivel ver as pessoas que estão participando do evento e com uma iluminação mais forte o local onde acontecem as vendas. Um garoto de boné está fazendo o atendimento. A imagem mostra uma edição noturna do Baile da Serra. É possível ver em primeiro plano pessoas de costas, com a mão no joelho dançando funk, sobre um gramado. Ao fundo é possível visualizar mais pessoas que estão presentes no evento.
Fotos: Alexandre Guzansche.
  • AMANDA CORRADI

    Urbanista e vive na região central. Foi acolhida por Belo Horizonte em 2008 e hoje circula pela cidade de bicicleta. Provavelmente você irá encontrá-la em algum boteco, praça ou festa ao ar livre.

  • ALEXANDRE GUZANSHE

    De Aimorés (MG). Vive e trabalha em BH desde 1995. É jornalista e artista visual. Atua como repórter fotográfico multimídia dos Diários Associados e desenvolve trabalhos dentro das artes plásticas. Lançou o seu primeiro livro de fotografias, "Ser Tão Gerais", em 2019.

  • JULIANA AFONSO

    Jornalista e mestre em Escrita Criativa. Escreve sobre viagens, cultura, política e direitos humanos. Mora no Carlos Prates, mas passou a adolescência "pescando" no 8103 e se perdendo pelo Cidade Ozanam para voltar pra casa.