A imagem mostra uma paisagem com uma lagoa abaixo e uma construção moderna do lado direito. O restante são árvores e vegetação ao redor. Do lado esquerdo da foto, aparece um vendedor de algodão doce com os sacos pendurados em um pau que ele ergue com as mãos.

TENSÕES À MINEIRA

Os diversos mundos que coexistem na Pampulha.

TEXTO
Lara Spagnol
FOTOS
João Gabriel

Conhecer uma cidade se assemelha a conhecer uma pessoa. Da mesma forma, não se pode conhecer sua cidade natal – ou sua pessoa natal; aqueles que nos acolhem desde o nascimento, só podemos reconhecer. Vem justamente do desejo de se lembrar da própria origem o nome da Regional Pampulha, casa de 350 mil habitantes na capital mineira Belo Horizonte. A história conta que os primeiros habitantes da região – que, no início do século XX, ainda era uma fazenda –, eram portugueses e, na tentativa de se reconhecerem, trouxeram consigo o nome do bairro onde viviam em Lisboa.

Mais de um século depois, a Regional se desenvolveu como polo turístico de Belo Horizonte e guarda em si cartões postais: um complexo arquitetônico, um estádio de futebol que já testemunhou de inesquecíveis êxtases às maiores dores, uma lagoa com capivaras e um jacaré muito gordo e tranquilo, mansões com aluguéis sob preços inacreditáveis, casas simples, prédios, comércios, vida e complexidade – enfim, todo o material do qual se alimentam as metrópoles contemporâneas.

No meio de toda essa diversidade, a origem da Regional ainda pode ser observada em alguns pontos: a Pampulha é a casa onde muitos forasteiros tentam se reconhecer. Por abrigar o câmpus da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a maior universidade do estado, a Regional centraliza a vida de muitos estudantes que chegam em Belo Horizonte para iniciar ou continuar sua vida acadêmica. Por trás do furor que existe em uma universidade federal, residem outras questões: como viver nessa nova cidade? Como conhecê-la? Como lidar com suas hostilidades? Onde buscar acolhimento? Que essas perguntas, em muitos casos, procurem por respostas na Pampulha é um fato que retoma um dos aspectos fundadores dessa Regional: a tensão discreta, ao modo mineiro, entre um ideal de modernidade e progresso e as camadas de complexidade da realidade social.

Modernismo para alguns

Entre o batismo da Regional e seu alçamento à promessa de espaço de lazer da capital, algumas décadas se passaram. É em 1940, dois anos após a inauguração da Lagoa da Pampulha, que a Prefeitura de Belo Horizonte começa a investir em sua urbanização. O processo é impulsionado pela construção de um complexo de lazer nos arredores do lago artificial, o que começa a atrair famílias da elite belo-horizontina. Apesar de afastada do centro, a Pampulha oferecia a possibilidade de se viver fora do ritmo de uma cidade em rápida expansão. A distância do centro, inclusive, é um fator determinante para o recorte da população que se instalaria ao redor da Lagoa: automóveis eram ainda mais inacessíveis à época e o transporte público que existia era insuficiente para viabilizar o deslocamento entre a Regional e outros lugares da cidade. Ter um carro tornava-se condição fundamental para se viver na Pampulha.

A imagem mostra uma roda gigante ao fundo, Debaixo dela, vemos um conjunto de coqueiros e algumas outras árvores. Logo à frente, há uma lagoa grande. No primeiro plano da imagem tem um homem, visto a contra-luz, que observa a paisagem com as mãos na cintura.

Paralelamente a isso, havia o interesse do então prefeito da cidade, Juscelino Kubitschek, em transformar a região no cartão postal do progresso e da modernidade em Minas Gerais. É nesse cenário que Oscar Niemeyer, arquiteto conhecido pelo modernismo de suas obras, é convidado a projetar o Conjunto Arquitetônico da Pampulha, entre 1942 e 1944. Os feitos de Niemeyer fazem do entorno da Lagoa da Pampulha um dos pontos turísticos da cidade até os dias atuais: o Conjunto Moderno da Pampulha foi reconhecido como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) em 2016.

No cerne do projeto modernista, estava o ideal de rompimento com a tradição, expresso na ousadia das curvas e dos traços retos dos edifícios que compõem o Museu de Arte da Pampulha – inicialmente construído para ser um cassino –, a Casa do Baile, o Iate Tênis Clube e a Igreja São Francisco de Assis, conhecida como Igrejinha da Pampulha. Para além da estética das construções, a proposta modernista também almejava representar o surgimento de uma cidade voltada para o futuro, um elogio do progresso e a superação do passado.

O progresso do passado: uma juventude dos sonhos

A construção desse mosaico progressista, na capital de um estado conhecido por seu apego à tradição, é composta por inúmeras histórias. Algumas delas se colorem com os sons e a euforia das memórias da juventude, ecoam uma atmosfera de quase sonho, na virada dos anos 1960 para os anos 1970. Esse foi o cenário no qual cresceram juntas Sandra de Andrade Neves e Louise Margareth Martins – a Lelete. Hoje com 66 e 65 anos, respectivamente, elas contam sobre uma amizade que nasceu em cima do muro que separava as casas em que viviam no bairro São Luiz, na década de 1960. Ali elas subiam para conversar durante a noite, quando não estavam em sala de aula no Colégio Santa Marcelina, também na Regional.

Suas memórias remontam a uma época em que a Lagoa da Pampulha não era poluída ou fétida e, pelo contrário, convidava a passeios de jet-ski e banhos em dias quentes. O início da adolescência na região fez com que se formasse uma turma que se reunia para tocar instrumentos, caminhar, nadar na Lagoa, curtir as conhecidas horas dançantes na casa dos amigos. No relato das duas amigas, a região nobre da Pampulha aparece não só como cenário, mas como elemento que marca o crescimento de cada uma: do Iate Tênis Clube passam para a boate do Clube Sírio Libanês; dos banhos na Lagoa passam para a Ilha dos Amores, onde iam, nas palavras de Sandra, “dar uns beijinhos”. Já um pouco mais crescidas, as amigas relembram as aventuras e as digressões de uma juventude que elas mesmas reconhecem ter sido privilegiada. “Nossos pais tinham carro, então todos nós começamos a dirigir cedo”, afirma Sandra. Quando queriam, escapavam para outras partes da cidade, como o Centro e a Savassi, sem ter de recorrer aos ônibus que, segundo Louise, passavam de hora em hora.

A possibilidade de viver outros pontos da cidade, no entanto, não tornava a Regional menos convidativa. Elas afirmam que, junto com os amigos, eram conhecidos como a “Turma da Pampulha”, e até sustentavam uma certa rivalidade com as turmas de outros bairros vizinhos, como o Jaraguá. A cisão criada na adolescência possibilita uma reflexão quando observada na realidade: o Jaraguá também é um bairro da Pampulha, assim como o São Luiz, mas a turma que se identifica como a da Pampulha é aquela que vive mais perto do Complexo Arquitetônico e das margens da Lagoa.

Nas palavras de Juscelino Kubitschek, no relatório que escreve para o Governador Benedicto Valladares Ribeiro, referente aos anos de 1940 e 1941, a Ilha dos Amores foi pensada para ser um “ponto apropriado ao repouso absoluto de algumas horas”, “longe de tudo quanto possa constituir aborrecimento”. Apesar de seu projeto original constituir uma área de lazer que nunca chegou a se tornar realidade, o espaço serviu de cenário para aventuras dos que viveram ali há algumas décadas. Atualmente, a ilha é vítima da poluição que assola a Lagoa e só pode ser visitada mediante autorização da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e da Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap).

A imagem é uma paisagem de Belo Horizonte vista da Lagoa da Pampulha. No fundo é possível ver vários prédios, pequenos. Mais perto, vemos um monte de árvores que rodeiam a lagoa.

A Turma da Pampulha ainda existe nos encontros esporádicos típicos da vida adulta e da maturidade, mas os amigos estão espalhados por BH, principalmente pela Zona Sul. O alto custo da vida no bairro São Luiz e questões relativas a heranças familiares são apontados pelas duas como motivo da mudança de parte dos integrantes do grupo para outros bairros.

A história de Louise, no entanto, passa por outros caminhos e retorna à casa da juventude. Quando se casa com o cantor e compositor Luiz Gonzaga Jr. – o Gonzaguinha –, ela se muda para o Sion. Mas, depois de algum tempo vivendo lá, o casal sente falta da calmaria da Pampulha. Motivado pela saudade da esposa, Gonzaguinha faz uma proposta ao dono da casa em que Louise vivera, compra-a, e mudam-se para a Pampulha. A vida calma na região impulsiona suas composições, entre elas uma das mais famosas: Lindo lago do amor, lançada em 1984. “Gonzaga fez o Lindo lago do amor sobre a Lagoa, porque aqui era maravilhoso”, ela afirma. Nas palavras de Louise, a região foi um porto seguro para o artista, onde ele vivia com saúde. “Na Pampulha ele encontrou a felicidade”, sintetiza.

Existe nessas vivências um aspecto de construção de identidade que se mistura com o espaço e gera a sensação de pertencimento que não se apaga com o tempo. As duas amigas, que possuem Belo Horizonte como cidade natal, não viveram a experiência de conhecer a Pampulha, mas, sim, de se reconhecerem na Regional, construindo a si próprias junto às ruas e aos espaços que frequentavam. Sandra, que não mora mais no bairro São Luiz, afirma: “É uma saudade não só física, mas emocional, que nós temos da Pampulha”. Louise diz, habitando a mesma casa em que viveu a infância – a casa que recebe de Gonzaguinha: “É aqui que pretendo viver até meus últimos dias”.

O encontro das duas amigas, razão da amizade que persiste até os dias atuais, é resultado de alguns privilégios aos quais a construção da Regional se destina. Os pais de Sandra, naturais de Belo Horizonte, que antes habitavam a Savassi, mudam-se para a região porque seu pai descobre a venda de lotes na Pampulha, e compra logo quatro de uma vez: “Ele não gostava de vizinhos”, ela diz em tom de brincadeira. A família de Louise, o pai de Caratinga e a mãe de Muriaé, vêm para Belo Horizonte jovens, moram primeiro no Barro Preto e depois vão para a casa que dividiria o muro com a casa de Sandra.

A imagem tem, ao fundo, a Lagoa da Pampulha, rodeada de árvores. No primeiro plano, temos um homem vendendo algodão doce, com uma bolsa de lado e olhando para o fotógrafo.
Uma cisão importante

A promessa do progresso que se une a uma vida saudável, tranquila e longe do centro atrai muitos, mas se destina àqueles que podem arcar com os custos dessa vida. Apesar da idealização do projeto abarcar a elite – a quem se destinariam o Iate Tênis Clube e o Cassino – e as classes populares – que teriam seu lazer na Casa do Baile –, o projeto de Niemeyer serviu primordialmente à população rica da cidade, já que o acesso à região era muito difícil e os lotes ao redor da Lagoa eram caros. A ideia de progresso parecia caminhar rumo ao futuro pisando o solo das diferenças sociais.

Na mesma época, o espaço pertencente à então Fazenda Dalva é desapropriado para dar lugar à construção do câmpus da UFMG, feito para reunir, em um mesmo lugar, a maioria dos cursos da universidade e prover a estrutura necessária para a comunidade acadêmica. Sua inauguração acontece algum tempo depois, na década de 1960, e instaura uma mudança significativa na região.

A inauguração do câmpus da UFMG na Regional Pampulha representa parte de uma mudança que hoje já se encontra consolidada: entre as avenidas Antônio Carlos e a Carlos Luz, e entre a avenida Abraão Caram e o Colégio Militar, se dividem estilos de vida e modos de viver a cidade muito distintos. Por trazer para a região a vida acadêmica, o câmpus também é o espaço que congrega pessoas no início de sua vida profissional, moradores recém-chegados na cidade e estudantes naturais de Belo Horizonte. A criação de bairros ao redor da universidade, com o objetivo inicial de prover a infraestrutura necessária àquela comunidade crescente, também é um fator que auxilia na popularização e diversificação social da região.

No final da década de 1990, no bairro Ouro Preto – avenida Fleming, a poucos quilômetros da orla da Lagoa da Pampulha – são instaladas as primeiras unidades da Moradia Universitária da UFMG. Atualmente, a avenida possui três edifícios de médio porte que, juntos, abrigam mais de mil estudantes da universidade, naturais de outras cidades. De estrutura bem mais simples que as construções do Conjunto Arquitetônico da Pampulha, os apartamentos possuem configuração variada, mas geralmente são compostos por oito quartos cada, sendo as demais áreas compartilhadas entre moradores. Parte integrante do Programa Assistencial Estudantil financiado pela Fundação Universitária Mendes Pimentel (Fump), a Moradia Universitária oferece aos estudantes acomodações que variam de acordo com certos critérios. Os valores podem variar da gratuidade aos 75 reais mensais para os alunos de baixa renda assistidos pelo programa.

O Campus da UFMG se instala geograficamente na regional e, ao fazê-lo, instala também uma cisão temporal simbólica na Pampulha. Atravessá-lo é como atravessar o tempo, partir da ideia de um futuro idealizado pelo modernismo e parar no presente, com todas as suas maravilhas e contradições. É partir da Igreja São Francisco de Assis e aportar no Bar do Cabral.

Nos muitos apartamentos que compõem a Moradia estão estudantes que, a princípio, compartilham entre si o fato de serem forasteiros em Belo Horizonte e precisarem do auxílio da FUMP para viver na cidade. A partir desse ponto em comum, cada um deles traça rotas distintas ao longo da capital mineira.

Amanda Pavani Fernandes, 33 anos, é uma das pessoas que chegou em Belo Horizonte tendo a Pampulha como porta de entrada. Natural de Santa Cruz das Palmeiras, no interior de São Paulo, ela muda-se para a capital de Minas Gerais em 2007, para cursar Letras na UFMG, no período diurno. Não tinha ideia do que esperar dessa cidade e, na Pampulha, o que a interessava mesmo era o Mineirinho, o Estádio Jornalista Felipe Drummond, onde eram realizadas as partidas de vôlei que ela acompanhava pela TV. “Eu era uma criança saindo do interior e vindo para uma cidade grande”, ela conta, no início de uma história com a qual tantos colegas da Moradia poderiam se identificar.

Apesar de não saber muito sobre a cidade que lhe abrigaria pelos próximos anos, Amanda sabia como fazer para se manter aqui. Seu plano incluía ser aprovada no processo para ter acesso à Moradia já no primeiro mês, pois esse era o período pelo qual seus pais poderiam prover sua estadia na cidade. Após o processo da FUMP, que ela descreve como “um rito de passagem”, recebeu a autorização para ocupar um dos quartos da Moradia 01 quando seu prazo no quarto que dividia no Santa Branca já havia vencido e ela estava no ponto de ônibus, com as malas na mão. Quanto à sua experiência nos seis anos em que viveu lá, ela afirma: “Era muito melhor do que eu esperava. Eu tinha um quarto só para mim, estava rodeada de pessoas parecidas comigo, os apartamentos eram só de mulheres. Vivi um aprendizado na base da disciplina, pois eu vim para Belo Horizonte completamente verde”.

A imagem mostra uma escultura desfocada ao centro da foto. Ao redor dela, em foco, vemos um monte de flores roxas e vermelhas, além de folhas verdes.

Fora dos apartamentos, um novo mundo entre a avenida Fleming e o câmpus da UFMG se abre. As corridas em volta da Lagoa, os passeios de bicicleta, as noites nos bares da Fleming – “Quando tínhamos dinheiro!”, ela ressalta, referindo-se aos preços salgados dos estabelecimentos da região –, tudo isso fazia parte de sua rotina enquanto estudante, resultando no que ela define como uma “mistura estranha” entre a parte rica da Regional e os estudantes da Moradia.

A chegada em Belo Horizonte nessa Regional e nesse contexto, segundo Amanda, tornou a experiência de conhecer a cidade muito menos difícil do que poderia ter sido. “Quando você é colocado junto com seus semelhantes, é muito bom”, ela resume. Nesse processo, a criação de uma relação afetiva, em que a própria identidade se molda à medida que se explora os espaços, se repete. “Eu me sinto em casa em BH, é a minha cidade favorita do mundo, e a Pampulha é o meu local favorito do mundo. Sempre que saio e volto, quando venho de avião vejo as minas carcomidas pela mineradora e me sinto em casa. Quando venho de ônibus e passo por Betim, sinto que estou chegando em casa. É uma sensação que não tenho onde nasci e vivi por 18 anos. Minha identidade de local é aqui”, afirma.

Atualmente, Amanda é doutora em Estudos Literários pela UFMG e, recentemente, foi professora substituta na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) e na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), um caminho que ela credita à experiência de ter vivido na Moradia, sem a qual ela afirma que teria evadido e não teria terminado os estudos.

A imagem mostra uma roda gigante com cabines coloridas. É possível ver um céu azul. A roda gigante está rodeada de árvores, com destaque para dois coqueiros.

Relatos como esse ilustram o fato de que a Moradia Estudantil representa a ocupação de determinados espaços da Pampulha por uma camada da população que, historicamente, não teve acesso ao progresso e ao modernismo anunciados quando do nascimento da Regional. Se, na gênese da Pampulha, a região foi a casa onde os portugueses tentaram se reconhecer, atualmente, e a despeito dos processos elitizantes que rondam a sua criação, a Pampulha abriga parte daqueles que talvez não poderiam morar em outros espaços da cidade.

Uma nova relação se cria a partir daí, no exercício de conhecer e explorar a capital. Os estudantes forasteiros, recém-chegados a Belo Horizonte, veem no câmpus o mediador das relações entre eles e a própria cidade e, de forma mais íntima, entre eles e a Regional Pampulha. A ideia de um lazer elitizado, as ostensivas mansões do bairro Bandeirantes... tudo isso parece cristalizado em um passado deslocado da realidade das moradias, dos restaurantes universitários, dos sofás empoeirados e cheirando a tabaco, tão característicos dos diretórios acadêmicos das faculdades.

O câmpus da UFMG se instala geograficamente na Regional e, ao fazê-lo, instala também uma cisão temporal simbólica na Pampulha. Atravessá-lo é como atravessar o tempo, partir da ideia de um futuro idealizado pelo modernismo e parar no presente, com todas as suas maravilhas e contradições. É partir da Igreja São Francisco de Assis e aportar no Bar do Cabral.

Pode ser que esteja aí, na chegada de outra geração de forasteiros e na possibilidade de se ocupar espaços da cidade antes interditados, o rompimento almejado pela modernidade.

A extensão da casa

Talvez seja curioso que, em meio a um complexo luxuoso construído para servir de lazer aos moradores da Pampulha, tantos estudantes reconheçam em um bar às margens da avenida Antônio Carlos a casa que eles partilham em comum. Com um portão de grades de ferro, uma pequena varanda coberta e um salão fechado, o Bar do Cabral, há mais de 40 anos, impõe sua simplicidade entre o barulho incessante de ônibus, carros, caminhões, jukebox, gargalhadas, gritos e mais tantos outros sons que compõem sua sinfonia urbana.

Como em muitas tradições, não se sabe exatamente os motivos que levaram o estabelecimento a se tornar o preferido entre a maioria dos estudantes da UFMG. Há a proximidade com o câmpus e o preço da cerveja, amigável ao bolso universitário. Mas o que parece realmente reunir por tanto tempo os alunos ao redor do bar é uma espécie de acordo tácito: eu vou porque o outro vai. O outro vai porque eu vou.

A imagem mostra um conjunto de janelas/varandas de um prédio. A foto está escura e parece ter sido tirada de noite. Em um dos apartamentos, é possível ver uma luz acesa e a porta aberta. Tem uma toalha estendida na grade da varanda.

A dinâmica que leva tantos estudantes ao bar parece ser mais um elemento revelador dos contrastes da Pampulha. A Regional abriga, ao mesmo tempo, casas de festa que são palco de eventos luxuosos e espaços como o Bar do Cabral, muitas vezes a primeira experiência de vários deles com a conhecida vida boêmia belo-horizontina.

Se conhecer uma cidade se assemelha a conhecer uma pessoa, há de se considerar também as imprevisibilidades desse processo. Aspectos sociais, econômicos, geográficos, políticos, entre outros, contribuem para as mudanças de percurso que compõem a história dos espaços. No caso da Regional Pampulha, os objetivos que impulsionam sua criação, a urbanização e a construção do complexo de lazer muito provavelmente não contemplavam, à época, a expansão pela qual a região passaria e, muito menos, a diversidade que o seu conjunto de bairros abarcaria.

Ao ser construída sobre os princípios do modernismo, a Regional se vê com a missão de levar a ideia de progresso e de inovação para o restante do estado e do país, alçando Belo Horizonte ao status de capital moderna. Hoje, um século após a Semana de Arte Moderna de 1922 e 80 anos após a construção do complexo arquitetônico, a Pampulha continua encerrando em si as tensões entre os novos modos de vida e os modos tradicionais. O que hoje parece irônico, porém, é o fato de que os modos tradicionais, atualmente, são os modos que, à época de sua construção, eram tidos como novos e inovadores.

A novidade anunciada pelo modernismo não modificava as estruturas de diferença social que são a base sobre a qual se ergue não só a Pampulha, mas, de um modo geral, as grandes metrópoles do capitalismo. O que haveria de inovador na construção de um bairro para as elites, tão afastado do centro que não poderia nem sequer ser frequentado pelas pessoas de classes sociais mais baixas?

A antiga inovação se torna tradição e, hoje, é tensionada quando aqueles que há 40 anos não podiam visitar a região chegam aqui para ficar e se reconhecem nas moradias, nos bairros ao redor do câmpus e nos bares simples. A história da Pampulha, portanto, é a história de uma promessa de acesso a uma parte da cidade que se cumpre com muitos anos de atraso. Hoje, pessoas de classes sociais distintas podem se reconhecer nesse espaço, criando memórias e laços para uma vida inteira. Ou, no caso daqueles que não nasceram aqui, existe a chance de entrar pela Pampulha e conhecer a cidade enquanto conhecem a si próprios.

Pode ser que esteja aí, na chegada de outra geração de forasteiros e na possibilidade de se ocupar espaços da cidade antes interditados, o rompimento almejado pela modernidade.

A imagem é ocupada pela Lagoa da Pampulha, em sua maior parte. No fundo, é possível ver a Igreja São Francisco de Assis. No primeiro plano da foto, vemos um homem sentado na grama observando a paisagem.
  • LARA SPAGNOL

    Trabalha com escrita e é doutora em Estudos Literários. Do interior de Minas, ancorou em Belo Horizonte e há 15 anos se divide entre a vida na Pampulha e as mesinhas amarelas do Centro.

  • JOÃO GABRIEL

    Trabalha como consultor de gestão e é mestre em Filosofia da Arte (UFMG). Cresceu no bairro Nacional e atualmente mora no Jaraguá. Dedica-se à fotografia como um modo de ressignificar o mundo ao seu redor e a sua própria memória.