A imagem traz, em um primeiro plano, a silhueta de duas pessoas que assistem, das arquibancadas da Praça Cristo Reina, à apresentação de um grupo de jovens que, ao fundo, participam de uma batalha de MCs na Pista de Skate do Barreiro.

QUEBRADA COLETIVA

A poesia vive e pulsa na maior Regional de Belo Horizonte.

TEXTO
Vênus Sunêv
FOTOS
Rafael Freire, Ana Caroline Azevedo, Laura de Las Casas

Coletivo: adjetivo que abrange várias pessoas ou coisas; que pertence a várias pessoas.

A Escola Municipal Antônio Aleixo, onde estudei durante boa parte da minha vida, existe até hoje, bem no centro do Barreiro. Ela foi meu primeiro ponto de referência. De lá, eu sabia ir para qualquer canto, desde a casa da minha mãe até a casa de acolhimento onde morei por anos. Os caminhos estavam guardados na minha memória, sempre a partir da escola. Há pouco tempo, voltei ao colégio para dar uma oficina de escrita criativa e me dei conta do tempo quando olhei para a professora de artes da minha época de criança e vi que ela tinha se tornado a diretora. Revisitando memórias assim, me lembro do primeiro “coletivo” de que fiz parte fora do ciclo familiar: a escola. Duas palavras me vêm à cabeça: pertencimento e ancestralidade.

Peço licença para falar um pouco sobre mim enquanto conto a história do Barreiro. Os dois caminhos se misturam profundamente por ter sido este o lugar onde, como nenhum outro, me senti em casa. Durante muito tempo, minha vida foi da escola para casa e vice-versa, tudo dentro de uma dinâmica familiar. Quando comecei a ter contato com a arte, nas aulas de circo, aos 15 anos, os caminhos começaram a se abrir. Mas foi um pouco mais tarde, quando frequentei um curso de arte e tecnologia chamado Oi Kabum, que tive contato com a palavra de forma mais profunda. Em oficinas de escrita criativa, haikai e slam, alguma coisa muito forte se mexeu dentro de mim. Tive fome daquilo. Queria morrer escrevendo.

SLAM. O termo vem do inglês e se assemelha ao som de uma pancada em uma superfície, uma porta se fechando com o vento ou um punho batendo forte em uma mesa. Slam é uma palavra com som. O uso do termo slam para nomear as batalhas de poesia que aconteciam nas periferias surgiu em 1984, em Chicago, nos Estados Unidos. Desde então, ela é símbolo deste acontecimento que dá voz àqueles que vivem à margem e inspiração para quem escuta.

Falo disso porque o slam foi a porta de entrada para a minha história com o Barreiro. No momento em que conheci os coletivos do meu bairro e quem os compunha, me senti parte daquilo. A maioria dos meus amigos de hoje eu encontrei nesses espaços. O interesse pelo slam me fez reparar mais nos coletivos que circulam pela cidade e pela minha quebrada. Fui vendo mais sentido nas expressões diversas de arte. Ano após ano, uma coisa muito bonita começou a ganhar forma, e foi crescendo por dentro o orgulho de ajudar a construir a cultura artística do Barreiro.

A imagem retrata um dia ensolarado no Barreiro. No instante em que a fotografia é tirada, um ônibus passa pelo Viaduto das Artes.

Praça do Cristo, no bairro Milionários. Foto: Rafael Freire.

O começo de tudo

A oralidade registra a história da Regional: segundo o Instituto Macunaíma, por volta de 1855, surgiu um lugar chamado Fazenda Barreiro. Com o tempo, esse espaço se transformou em uma comunidade formada por imigrantes que produziam alimentos e outros produtos para suprir as necessidades de quem estava construindo a nova capital, Belo Horizonte, fundada cerca de 40 anos depois. A região foi crescendo ao longo dos anos e ganhando proporções grandiosas. Hoje em dia, o Barreiro abriga uma das maiores populações entre as regionais da cidade, com mais de 350 mil habitantes, distribuídos em 74 bairros. Os artistas desse lugar batem no peito para dizer o quão importante é ser daqui. Há quem considere o Barreiro a própria cidade, e isso pode ser visto estampado nas blusas personalizadas, usadas por tanta gente, com o bordão “Barreiro City”. Esse sentimento vem da juventude, mas também das pessoas mais velhas.

Se eu fosse te levar para dar uma volta por aqui, primeiro eu te perguntaria o que você gosta de comer. No Barreiro tem de tudo, desde “podrão” até comida chique. Se quisesse uma dica minha, bem específica, eu sugeriria um hambúrguer com abacaxi que tem no bairro Itaipu. É uma explosão de sabor!

Eu te levaria pra um rolê na Serra do Rola Moça. Tem uma entrada por trás da Serra, de onde dá pra chegar os olhos até Ibirité. A vista te descansa a alma. As montanhas nos acalmam. Depois, te levaria para conhecer o Cristo, onde tem um mirante da cidade. Outro lugar precioso do Barreiro é o Viaduto das Artes, onde muitos encontros importantes aconteceram para mim. Nem sempre tem eventos, mas as exposições de artes são fixas.

Também não poderia deixar de ir com você no comércio do Barreiro. É tão diverso que chega a ser engraçado. Tudo que você precisar, tem ali para vender. No meio dos produtos, famílias inteiras se organizam para ganhar a vida. O Barreiro tem seu próprio sistema. E eu faço parte dele.

Quando perguntam para as pessoas daqui onde elas moram, sempre vejo um sorriso no rosto. O Barreiro é um lugar de união real. Aqui, sabemos os nomes uns dos outros, andamos pelas ruas apontando para as pessoas e para os lugares para dizer: “esse é meu dentista”, “aquela foi a igreja em que me batizaram”, “estudei nessa escola”, “namorei aquele menino ali”. É uma região ainda com muitas dificuldades de acesso a serviços básicos também. Boa parte das produções artísticas daqui denunciam o descaso com nossas casas alagadas, ruas que não comportam tantos carros, pessoas em situações de vulnerabilidade, polícia que abusa da autoridade. São essas violências que os coletivos de arte do Barreiro tentam evidenciar no dia a dia. Os artistas daqui não ocupam só os palcos.

Quando perguntam para as pessoas daqui onde elas moram, sempre vejo um sorriso no rosto. O Barreiro é um lugar de união real.

A imagem traz uma jovem mulher negra. Sua pele é tatuada e seu cabelo, vermelho e cacheado. Seu vestido cor-de-rosa acompanha diversos adereços: brincos, piercings e um colar. Ao seu lado, uma planta decora o ambiente. Ao fundo, uma janela aberta revela uma cortina com estampa de flores.

Vênus Sunêv. Foto: Laura de Las Casas.

A poesia escancarando portas

Minha paixão pela poesia falada me fez chegar no Slam Clube da Luta, que acontece ao lado do Viaduto Santa Tereza, no Teatro Espanca, no Centro de Belo Horizonte. As batalhas contavam com poucas participações femininas, e eu era uma delas. Com 20 anos, cheguei colocando o dedo na ferida. Eu já era adulta, mas ainda muito jovem. Sentia euforia por ter espaço para falar o que eu vivia. A sensação era de me rasgar no meio. Expus meus machucados de um jeito doloroso e hoje aprendi: não preciso falar sempre brava para ser ouvida. O slam, para quem não conhece, é a poesia falada em ritmo, sem contar com instrumentos musicais ou figurinos específicos. Ele tem essa característica de ser uma expressão combativa. E eu estava mesmo ali para combater muitas coisas.

Ao mesmo tempo, o Coletivo Família de Rua estava a todo vapor com os duelos de MCs, que também aconteciam debaixo do Viaduto de Santa Tereza. Em paralelo a esse fervor cultural que acontecia na área central de BH, o prefeito da época, Marcio Lacerda, começou sua política higienista que buscava “limpar” a cidade de qualquer manifestação artística, tentando impedir o rap do Centro de acontecer. O Coletivo Família de Rua, que já mobilizava muita gente, decidiu parar de fazer as batalhas de rap em 2014, quando começou a ter crianças demais no rolê noite adentro – muitas delas em situação de rua – se envolvendo com drogas.

Por um ano não houve nenhum evento. Depois eles voltaram à ativa durante a tarde. A pausa em um dos rolês que era ponto de encontro para quem queria curtir a vida cultural do centrão, principalmente entre o povo das periferias, foi um impulso para que as pessoas que frequentavam esses lugares olhassem para seus próprios bairros e começassem a fortalecer o que havia neles. Cada regional teve que desembolar sua própria batalha, cada quebrada começou a fazer o seu próprio movimento. Foi nesse período que percebi como o Barreiro brilhava forte.

Costumo dizer que esse acontecimento foi que nem uma teia de aranha, criando uma rede entre todo mundo da dança, do teatro, da poesia. O pessoal começou a se encontrar religiosamente no centro do Barreiro, onde aconteciam as batalhas, e ali começou a surgir um movimento capaz de fortalecer coletivos já existentes e impulsionar novos, potencializando as forças artísticas da região.

A imagem retrata a paisagem da Praça do Cristo, no Barreiro. Ao centro, sob o céu azul em um dia de tempo aberto, ganha destaque uma imagem de Jesus de Nazaré com os braços abertos.

Viaduto das Artes, no Bairro das Indústrias. Foto: Rafael Freire.

Vejo as mensagens das pessoas que participam desses espaços como uma espécie de vômito em direção ao nosso sistema decadente. Esses coletivos buscam novas formas de expressão sem se adequarem às regras impostas, ocupando espaços públicos e falando abertamente de política, racismo, homofobia e outras violências vivas entre nós. Quem integra esses movimentos moldou e molda a cultura local – e está construindo ela de forma coletiva e constante.

É significativo que esse crescimento de coletivos tenha surgido na cidade durante momentos de manifestações políticas, quando a arte e a cultura se mostraram extremamente ameaçadas. Ao reprimir os movimentos culturais, o ex-prefeito Marcio Lacerda fez com que eles ganhassem ainda mais força. Acho interessante ter me deparado com uma geração de pessoas com objetivos reais de mudança e experimentação pessoal. Essa história se envolve ao redor das vidas dos moradores do Barreiro e de sua relação com grafite, arte, música, dança, teatro e outros tipos de expressões criativas.

Esses grupos se conhecem e se fortalecem de diversas formas. Poetas, DJs, atrizes e skatistas já se apresentaram na Batalha da Pista, primeira batalha de rap da região, organizada na praça Cristo Reina, onde há também a Pista de Skate do Barreiro. Esse lugar se tornou um espaço cultural com a ocupação da juventude, se abrindo a novas expressões diariamente. Vi muitos desses grupos crescendo, trazendo questionamentos e lutando por direitos – não só os próprios, mas os comuns.

A imagem captura uma paisagem urbana do Barreiro. Ao centro, uma rua se estende até ir de encontro às árvores que cortam o cenário, em um segundo plano. Ao fundo, em um aclive, edificações diversas compõem uma área densamente povoada.
Foto: Rafael Freire.

Quem faz parte dessa história?

Para muita gente, falta esperança diante dos olhos. Vivenciar a realidade da nossa geração tem sido um processo difícil. Entre meus amigos e vizinhos, vejo o Estado tirando a dignidade de pais de família, aumentando a fome de alimento – e de arte. Daqui, eu vejo a polícia e a violência transformando pessoas com grande potencial em pessoas frustradas e agressivas, pois precisam correr atrás de qualquer trabalho para conseguirem dar conta do sistema cruel em que vivemos – afinal, o urgente é a busca pela sobrevivência. Muita gente trabalha duro e não tem tempo para respirar, para viver a vida, sentir a arte, ler um poema.

Mas também acredito que essa geração veio para quebrar paradigmas. Há quem nade contra a corrente do capitalismo selvagem. João Paiva, um companheiro do Barreiro, é uma dessas pessoas. Ao idealizar o Batalha da Pista, junto a outros artistas, ele conseguiu dar respostas a muitas opressões vividas pelas pessoas daqui. Ganhador do Slam Clube da Luta de Belo Horizonte em 2014 e 2015, e campeão do SlamBR em 2014, Paiva foi também representante do Brasil na Copa do Mundo de Slam, em Paris, no ano de 2015. Naquele mesmo ano, ele venceu o International Rio Poetry Slam, na Festa Literária das Periferias (Flup). Em 2018, lançou seu primeiro álbum solo, intitulado “A balada do guerrilheiro”. Não é à toa que o Barreiro é um símbolo sempre presente em suas obras. João é uma referência na região, como professor, rimador e músico.

Antes da pandemia, as batalhas aconteciam quatro vezes por mês. As inscrições eram até as 19 horas do dia marcado para o evento, e cada dia contava com uma pessoa escolhida para ser o mestre ou a mestra de cerimônia, que tem como função marcar as rimas. O tema era sorteado. Se tinha oito pessoas inscritas, eram quatro rodadas no total. Toda batalha tinha premiações, mas raramente em dinheiro. Os prêmios eram quase sempre coisas fornecidas pelos próprios artistas que participavam ou assistiam à competição. Me lembro de uma vez em que o vencedor ganhou uma folha pichada por cada pessoa que participou da batalha e foi a maior alegria. Existe coisa que realmente não tem preço.

“Precisamos alimentar essa consciência de que a gente tem que trabalhar por esse meio aqui, tanto que todo artista barreirense faz questão de explicitar ser um artista barreirense, tá ligado? A gente sabe que tem um peso e um impacto”.

A imagem traz uma multidão de jovens que ocupam as arquibancadas e um palco montado na Pista de Skate do Barreiro. Todos os olhares estão voltados para as duas figuras que, ao centro, travam entre si uma batalha de MCs no tradicional evento FaráOeste.

Batalha FaráOeste na Praça Cristo Reina, bairro Barreiro. Foto: Ana Caroline Azevedo.

Nos encontros proporcionados pela Batalha na Pista, pude conhecer também o MC Glauber Calixto. Atualmente, ele faz parte de três coletivos ativos no Barreiro: o grupo de Hip Hop In Rua (2014), banda Ponto Qu4tro (2015) e a dupla Calixto e Cavu (2022). Para Calixto, uma das particularidades da cultura do Barreiro é a criação de núcleos e polos de cultura que são formados na vizinhança, fortalecendo um senso de comunidade na região. “Não precisamos ter que sair para ir a outra quebrada. Temos lazer aqui. Temos cultura aqui”.

Para ele, valorizar a arte local é uma prioridade. “Precisamos alimentar essa consciência de que a gente tem que trabalhar por esse meio aqui, tanto que todo artista barreirense faz questão de explicitar ser um artista barreirense, tá ligado? A gente sabe que tem um peso e um impacto”. Atualmente, a Batalha mudou de cara e nome e é organizada pelo Movimenta Barreiro. O projeto, formado em 2014, é um coletivo cultural independente de pessoas físicas que realiza atividades culturais na Regional Barreiro. O grupo ocupa espaços públicos como a Pista de Skate do Barreiro, o Viaduto Santa Margarida e o Viaduto das Artes, fazendo também participações em outras ações, somando forças com outras frentes culturais regionais. A Batalha de MCs FaráOeste é a principal ação realizada pelo coletivo e acontece semanalmente desde 2016, na Pista de Skate do Barreiro, às quartas-feiras, de 18 às 22 horas. É nas ruas do Barreiro que a poesia vive. O Coletivoz é um dos projetos responsáveis por fazê-la pulsar na quebrada. É um espaço literário plural que funciona por meio de encontros semanais e mensais entre rappers poetas, artistas e comunidade em geral. Quem quiser chegar para recitar será sempre bem-vindo, será sempre bem-vinda!

Considerado um dos saraus mais antigos de Belo Horizonte, o Coletivoz se reúne, há quase 15 anos, como um espaço onde a poesia marginal pode ser ouvida. Grandes escritoras como Karine Bassi e Tamara Selva já ocuparam essa roda. Nesses encontros, por um momento, a gente esquece da negligência das grandes editoras em dar lugar somente a determinados perfis de autores e autoras – na maioria das vezes pessoas brancas, de classe média.

A imagem traz, em um primeiro plano, dois jovens – um rapaz adolescente e uma pequena garota – que, sentados em seus skates, usam as mãos para “remar” ao longo da pista. Ao fundo, um grande número de jovens assiste à batalha de MCs.
Foto: Ana Caroline Azevedo.

A arte está presente no nosso processo íntimo de formação humana para dar sentido ao que chamamos de vida, cultura e criatividade. Pensando nisso, me lembro de outro projeto importante para te apresentar: o Coletivo Avoante, produtora independente e criadora de um sarau itinerante com incentivo à palavra. Elas criaram o Slam Avoa, uma competição de poesia falada com a temática do amor.

O evento é organizado por uma dupla de mulheres, Bruna Daniely e Joice Santos Gonçalves. Normalmente, os slams têm um perfil marcante, com um tom de denúncia que se volta às temáticas incorporadas ao nosso dia a dia, questões difíceis de digerir. O slam te convida a uma reflexão social, ali, na hora. Para mim, foi um espaço de arrebatamento. Quando eu quis falar e ninguém queria me ouvir, foi com o slam que eu consegui elaborar e externalizar muitas feridas.

O Avoa é uma potência ao falar do afeto como ato político, principalmente quando a maior parte das pessoas que se apresentam são mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+. Para essa gente, o amor e o afeto podem parecer distantes ou até mesmo serem confundidos como algo desmerecido. “Avoa amor” é o bordão falado pela plateia sempre que alguém vai se apresentar, e eu gostaria mesmo que esse amor voasse sobre os corpos ali presentes. É bonito de ver.

Para mim, o amor é capaz de deixar a vida menos dura. O amor é a cura. No ano de 2019, fui representante do Avoa no Slam BR. Cheguei até as semifinais, competindo com poetas de todo o Brasil. Estar por esse slam foi uma sensação única e esse momento mudou minha vida. Foi quando eu escolhi ser leve e mudar um pouco a direção do meu discurso, tendo o afeto como norte. Essa escolha é genuína, isso é autocuidado, isso é autoamor.

A imagem retrata uma mulher jovem, de pele morena e cabelos castanhos e lisos. Em sua camiseta branca de mangas curtas, destaca-se a palavra “BRASIL”, e, abaixo, o número “9” remete a uniformes de equipes esportivas. Com um microfone em suas mãos e um grande alto-falante ao seu lado, ela marca sua presença no palco do FaráOeste.
Foto: Ana Caroline Azevedo.

O grupo Marginalias também é uma potência feminista do Barreiro e vem trazendo pautas da comunidade LGBTQIA+. Diretamente da Grande BH, o grupo de rap mineiro, com as MCs Belinha e Cassiê, lançou seu primeiro trabalho, chamado Parte do bolo, em 2021. Em narrativas poéticas, elas constroem as lutas político-culturais de quem está à margem.

Quando uma pessoa escreve um poema, compõe uma música ou pensa em uma obra de arte para expor no Viaduto das Artes, ela está se salvando um pouco do abismo – e salvando os outros.

As fundadoras do grupo contam que a ideia veio de uma conversa informal, quando apareceu a vontade de Cassiê e Belinha de trabalharem em algum projeto juntas. As duas começaram a se encontrar nos finais de tarde em pontos centrais do Barreiro para ouvir uns beats com outras mulheres que compartilhavam as mesmas afinidades. Os encontros foram fluindo, até começarem a produzir algumas letras. Pouco tempo depois, as outras integrantes saíram do grupo, restando apenas a dupla original. Belinha e Cassiê têm uma sintonia diferente. De tão amigas, ficam parecidas. São que nem irmãs. Atualmente, o coletivo conta com a ajuda de João Paiva para a captação de voz, porque, como eu já falei aqui, o Barreiro é união real.

Grande parte dos artistas que compõem os coletivos de arte citados aqui dedicaram anos de suas vidas movimentando o Centro de Belo Horizonte, mas há muito tempo têm focado seus movimentos na força da cultura local. Algo admirável nessa gente é como são capazes de desenvolver suas técnicas e transitar por espaços diversos da arte, como circo, danças urbanas, escritas, performances e tantas outras expressões artísticas. Isso é ser multiartista em sua completude.

É preciso reconhecer as favelas e as periferias como territórios de infinitas possibilidades para uma história com arte.

O acesso à cultura deve ser um direito garantido de toda a comunidade, e dar visibilidade à cultura existente em um lugar, além de registrar a memória e a história das pessoas que são parte dele, mostra que nesses espaços há muito mais do que dicotomia.

A imagem retrata, ao centro, três homens jovens que se apresentam no palco da Pista de Skate do Barreiro – dois MCs e um DJ. Suas vestes trazem estampados os dizeres “SANTA AND CALLE” e “BARREIRO”. Ao redor das três figuras, um grande número de pessoas, também jovens, acompanha o evento.
Foto: Ana Caroline Azevedo.

Quando vejo esses corpos-coletivos transitando pelos espaços, é como se eles me fizessem pensar: essa rua é minha. Essa rua é nossa.

No Barreiro tem problemas de moradia, tem violência, tem pobreza, mas tem também gente fazendo surgir alternativas possíveis aos dias de tormenta. Quando uma pessoa escreve um poema, compõe uma música ou pensa em uma obra de arte para expor no Viaduto das Artes, ela está se salvando um pouco do abismo – e salvando os outros.

Ver nossa região em movimento é um impulso aos momentos de luta, de brisa, de céu e de busca. Nossos trabalhos nunca ficam por muito tempo abstratos. A força da nossa contracultura é necessária para evoluir o passado. Todos nós sentimos o redimensionar do tempo, tudo aqui é resultado de uma luta cotidiana, íntima e interminável. Cada corpo aqui exposto marca a sua passagem e sabemos que queremos mudar muita coisa do século passado por meio do que fazemos hoje nas praças, ruas, espaços culturais e palcos espalhados pela cidade.

Eu gosto de pensar que os artistas foram criados para um propósito especial, pintando paredes e levantando bandeiras. Gosto de pensar que, com a arte, é possível ver mais estrelas no céu. Quando vejo esses corpos-coletivos transitando pelos espaços, é como se eles me fizessem pensar: essa rua é minha. Essa rua é nossa. A cada vez que alguém pensa assim, a arte é fortalecida porque, no coletivo, todo o seu potencial é amplificado.

Se você nunca foi, se você nunca viu, te convido a vir conhecer o monte de vida e arte que o Barreiro guarda. E toda vez que o Barreiro ganhar, nenhuma quebrada precisa perder. Afinal de contas, existem muitos portais abertos para esses sonhos pelo mundo afora.

A imagem retrata uma arquibancada tomada por um grande número de jovens que assistem ao evento FaráOeste, na Praça Cristo Reina, localizada no Barreiro. Em meio ao público, despontam os guarda-sóis dos ambulantes que vendem bebidas. Em um primeiro plano, crianças brincam com seus skates.
Foto: Ana Caroline Azevedo.

"Nascido e criado cultura de rua direto da Rua Agave Cola no campo do Estrela do Vale que nunca verá uma bola na trave DJ Teeny faz o beat direto do Bonsucesso, Liberdade mano é sério Barreiro e seus império Batendo nos seus estéreo Onde o cristo tem rinite e alergia do minério FODA-SE Álvaro Antonio sou bem mais o meu avô Só cola ali no Tirol e pergunta do Zé Pintô Pergunta comé que eu tô Pergunta comé que eu vou Lá na Zona Norte trombar com o mano Digô Certeza não é de metrô Que a verba ainda não entrou É isso que eles falou Que tem que esperar e pronto Que tem que esperar no ponto Que tem que ter 5 conto E eu quase sempre tô tonto Na madruga confundido doutor eu sou professor Mas com essas “roupa de bandido” pergunta pra onde é que eu vou Vou pra z.o Vou lá pro Coletivoz Vou gritar a Luta é voz Vou fazer umas poesia e ainda beber com meus herói Vou pra z.o Vou colar com NG, vou colar com mano IK Vou pra batalha da praça ver minha raça improvisar”

JOÃO PAIVA

 A imagem traz um grupo de adolescentes que, portando suas mochilas, sentam-se para conversar no alto da estrutura de uma pista de skate do tipo “half pipe”.
Foto: Ana Caroline Azevedo.
  • VÊNUS SUNEV

    Escritora LGBTQIA+ e estudante autodidata de Artes Visuais. Trabalha há mais de 10 anos transitando entre as artes visuais, tatuagem, oficinas de escrita criativa e diagramação de zines.

  • RAFAEL FREIRE

    Fotógrafo expert em pele preta há mais de 10 anos. Criador do projeto social Favela, a flor que se aglomera. Fotografar com outras lentes que não a do racismo.

  • ANA CAROLINE AZEVEDO

    Designer gráfica e estudante de arquitetura e urbanismo. Militante pela tarifa zero, cresceu atravessando a Zona Oeste de 9250 e hoje anda a pé pelas ruas da cidade.

  • LAURA DE LAS CASAS

    Trabalha com jornalismo ambiental e direitos humanos. Coleciona histórias escutadas nos ônibus da cidade e gosta de olhar a vida pelo buraquinho da fechadura.