A imagem traz uma safra de rúculas, ainda na terra, prontas para serem colhidas. Entre as folhas verdes e úmidas, uma mão exibe, delicadamente, pequenas larvas de cor amarela.

PLANTAR E IMAGINAR CIDADES

Cinco histórias sobre agricultura urbana na Regional Venda Nova.

TEXTO
Prussiana Fernandes
FOTOS
Daniela Paoliello

Um caule de manjericão, cortado das pontas superiores de uma planta já desenvolvida, pode ser colocado em um copo transparente com água para a produção de mudas em um processo chamado estaquia. Se ele ficar em um lugar iluminado, mas à sombra, raízes começarão a brotar da sua estaca. O enraizamento na água ocorre com mais facilidade em estacas macias como as de manjericão e hortelã, que logo podem ser transplantadas para a terra.

O termo raiz, no entanto, não se restringe à botânica. Nas palavras, raiz é o morfema do qual derivamos seu significado mais básico, algo que é compartilhado com termos da mesma família. Ela também pode significar origem ou fundamento, suporte ou alicerce, vínculo ou ligação. A construção deste texto, por exemplo, passa pelas raízes que tenho com Venda Nova, lugar onde cresci, mas também pelas histórias das pessoas que conheci durante o processo de apuração e pelos vínculos formados em torno de alguns territórios de plantio. Comecei este texto a fim de conhecer as hortas cultivadas em quintais na Regional Venda Nova. No caminho, me deparei também com canteiros em parques, em centros culturais e em lotes vagos. São iniciativas localizadas em pontos variados da região, com tamanhos, características e objetivos muito diferentes entre si. O plantio na cidade atravessa não só os fundos das casas, mas também espaços públicos, políticas municipais, movimentos sociais, saberes tradicionais e científicos e a vida de muita gente.

Trago as histórias que conheci por meio de cinco mulheres: uma agricultora, uma engenheira florestal, uma arte-educadora, uma aposentada e uma professora. As agriculturas que se desenham nas suas experiências são mudanças radicais na forma de pensar a cidade. Não aceitar viver sem terra para plantio, colocar políticas públicas em diálogo com práticas cotidianas, promover os saberes tradicionais, reunir pessoas em torno do cultivo. Tudo isso é radical. São histórias que inspiram mudanças profundas nos modos como vivemos e construímos a cidade.

“São histórias que inspiram mudanças profundas nos modos como vivemos e construímos a cidade”

A imagem retrata um pequeno trecho do Córrego do Capão. A água se encontra em um nível baixo e percorre um canal estreito em um terreno de topografia acidentada. A área no entorno do córrego é coberta por uma vegetação rasteira. Ao fundo, sob um céu azul e quase sem nuvens, há árvores de maior porte e muros com tijolo aparente marcam os limites do terreno.

Córrego do Capão ao lado do Parque do Conjunto Habitacional do Lagoa, também conhecido como Parque do Capão.

Se esse lote fosse nosso

Em frente ao Parque Lagoa do Nado, na avenida Pedro I, desça do ônibus e atravesse a rua na direção oposta. É nessa altura o início da avenida João Samaha, uma via comercial importante que atravessa o bairro São João Batista. Siga caminhando por ela e você verá, após o terceiro quarteirão, uma praça triangular, íngreme e arborizada, chamada José Belém Barbosa e, ao lado da sua ponta mais alta, um lote de 720 metros quadrados cercado por muros baixos. Foi ali onde encontrei Rosane Ferreira, 54 anos, que me recebeu para falar sobre a horta que cultiva no local com o apoio do amigo e vizinho Laurêncio Ferreira da Silva, 83 anos.

Do alto daquele lote, avista-se muita coisa. Ao longe, as copas densas das árvores do Parque Lagoa do Nado e, mais perto, os prédios altos cor de areia rosada do Condomínio Morada do Sol, na avenida logo abaixo, formando um contraste particular de cores e espécies urbanas. Dentro do lote, vemos pés de milho crescendo, parreiras de chuchu, canteiros de cebolinha, berinjelas penduradas, pés de manjericão de várias espécies, abóboras escondidas sob as folhagens, canteiros de couves bebezinhas, tudo espalhado por uma área de terra que ainda não foi totalmente ocupada.

Rosane e Laurêncio têm um contrato de comodato com o proprietário do lote onde plantam, um empréstimo gratuito para uso por um curto período de tempo que é renovado de três em três meses, até que o lote seja vendido. A vantagem é enorme para quem empresta: antes de começar o cultivo, é preciso limpar a área, capinando o mato e removendo entulhos e pedras do terreno. Em seguida, preparar a terra, subir os canteiros e, aí sim, plantar as mudas, processo que traz o ambiente de volta à vida. Rosane é quem conta sobre essa dinâmica: “Sempre tem um lote vago que o dono empresta pra plantar. Quando está sujo, com mato, ninguém quer comprar, mas sempre que está bonito assim, aí aparece”.

Nessa corrida contra o tempo, Rosane e Laurêncio trabalham na horta diariamente e vendem a produção de hortaliças, legumes e frutas para a vizinhança, gerando renda para ambos. Quem os procura geralmente tem interesse em comprar produtos orgânicos a um bom preço e perto de casa. Eles não utilizam agrotóxicos e fazem compostagem – um processo que é demorado. Rosane diz que faz muita falta um adubo em grande quantidade, tipo esterco, para manter a produção. A irrigação é feita à mão, mangueira em punho, com a água disponibilizada pela Prefeitura, algo que também não é fácil, dado o tamanho do terreno.

“Sempre tem um lote vago que o dono empresta pra plantar. Quando está sujo, com mato, ninguém quer comprar, mas sempre que está bonito assim, aí aparece”.

São várias as dificuldades relatadas pelos dois agricultores: água, adubo, mas também o acesso a mudas, em especial de hortaliças muito procuradas, como a alface. Outra dificuldade é com as ferramentas, que são poucas e já foram roubadas, não havendo nenhuma estrutura para guardá-las dentro do lote. O próprio acesso à terra e ao trabalho não está garantido, já que o acordo de comodato para uso do terreno é muito curto, algo de que Rosane lembra com olhos marejados: “Aqui eu nem estou plantando essas coisas que são muito demoradas porque nessa última que eu trabalhei cortaram tudo. E dá uma dó, sabe? Você vê laranja, banana, as frutas sendo… o trator. Eles não têm dó”.

Vinda de Poté, uma cidade vizinha a Teófilo Otoni, na região do Vale do Mucuri, em Minas Gerais, Rosane vive em Belo Horizonte há 22 anos. Foi lá em Poté, lugar das suas primeiras raízes, que ela começou a plantar: “Eu planto desde os cinco anos de idade. Sempre gostei de plantar, então é ruim quando a gente não pode mais mexer na terra. A gente tem que ter uma terra pra trabalhar”. A necessidade de acesso à terra para o trabalho e sobrevivência se junta a outra: a de mexer no solo para colocar em prática aquilo que foi aprendido há muito tempo. Dá gosto, faz bem e traz memórias.

Para seu Laurêncio, que tem um problema no joelho, mas não deixa de mexer com a horta, trabalhar é o que o mantém saudável.“Tem momento que eu tô trabalhando e não sinto nada. Aí depois dá uma dor aqui, oh, aí eu tenho que parar o pé. Depois eu manejo um pouquinho, passa a dor e eu continuo”. Nascido em Piancó, na Paraíba, veio com seu pai e sua mãe ainda jovem para Minas, há muitos anos, caminhando e pedindo carona na BR-101. Trabalhou bastante desde então. Concorda com as dificuldades e necessidades apontadas por Rosana e resume o que vê no lote de forma muito precisa: “É um mostruário vivo”.

A imagem traz, ao centro, um maço de rúculas recém-colhidas e cuidadosamente amparadas por um papel de pão. As hortaliças são exibidas por uma mulher jovem, de pele parda e unhas pintadas de um tom vermelho vivo. Sua vestimenta é um macacão jeans com botões dourados.

A cabeça pensa onde o pé pisa

Belo Horizonte já percorreu um bom trajeto em suas políticas públicas para a agricultura urbana, algo que teve início na década de 1990, quando foram criadas a Secretaria de Segurança Alimentar e uma série de programas ligados ao cultivo na cidade. Entre eles, talvez o mais marcante tenha sido os Centros de Convivência Agroecológica (Cevae), construídos em parceria com a Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas (Rede). Em Venda Nova, foi criado o Cevae Serra Verde próximo ao antigo Hipódromo Serra Verde, atual Cidade Administrativa.

A Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas (Rede) é uma Organização Social, formalizada em 1989, mas atuante desde 1986, que assessora comunidades e movimentos sociais urbanos, tradicionais e quilombolas na construção da agroecologia. Essa construção, segundo Marcos Luiz da Cunha Jota, membro da equipe técnica da Rede, está assentada no respeito e valorização dos saberes populares e na ideia de que a agroecologia é um componente fundamental para se pensar uma sociedade sustentável, baseada no bem viver. Atualmente, a organização atua na Região Metropolitana de Belo Horizonte e na região leste de Minas Gerais, mas também realiza projetos a nível federal.

O Programa Cevae colocou a agricultura urbana no radar das políticas de abastecimento e meio ambiente da cidade, multiplicando as articulações entre poder público, movimentos sociais e agricultoras(es) nos anos seguintes. Em 2011, foi criada a Política Municipal de Apoio à Agricultura Urbana, instituindo no município diretrizes que já existiam a nível federal e estadual. Entre seus objetivos, há a proposta de ampliar a disponibilidade de alimentos, promover o trabalho de organizações de economia popular e solidária, gerar emprego e renda e estimular práticas que tenham como referência a agroecologia.

Com esse percurso, a agricultura urbana vem ganhando espaço como uma das soluções para o abastecimento e a segurança alimentar do município e como forma de gerar emprego e renda para pessoas mais vulneráveis. Atualmente, na Prefeitura de BH, as suas questões são tratadas pela Secretaria de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania (SMASAC). Mais especificamente, é na Subsecretaria de Segurança Alimentar e Nutricional (Susan) que se desenvolvem os projetos da área, por meio da Diretoria de Fomento em Agroecologia e Abastecimento (DFAB) e sua Gerência de Fomento à Agricultura Urbana (Gefau).

Na Prefeitura, a Gefau tem à sua frente a engenheira florestal Edglênia Lopes Nascimento, 30 anos. Ela conta que, desde 2017, a Gerência vem discutindo suas formas de atuação, buscando ajustar seus conceitos e atendimentos às realidades da cidade, onde a agricultura urbana se multiplica com perfis variados. Nesse processo, ela destaca uma importante mudança de termos, de “hortas” para “unidades de produção”: “Quando falamos de unidade de produção, não necessariamente estamos falando de horta. Podemos estar falando também de agrofloresta, de pomar, de quintal produtivo, de horto medicinal. As modalidades produtivas podem ser muitas”.

A Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas (Rede) é uma Organização Social, formalizada em 1989, mas atuante desde 1986, que assessora comunidades e movimentos sociais urbanos, tradicionais e quilombolas na construção da agroecologia. Essa construção, segundo Marcos Luiz da Cunha Jota, membro da equipe técnica da Rede, está assentada no respeito e valorização dos saberes populares e na ideia de que a agroecologia é um componente fundamental para se pensar uma sociedade sustentável, baseada no bem viver. Atualmente, a organização atua na Região Metropolitana de Belo Horizonte e na região leste de Minas Gerais, mas também realiza projetos a nível federal.

A Gerência atende a três tipos de unidades produtivas atualmente: as coletivas comunitárias, as institucionais públicas e as de território de tradição. Para receber atendimento, o grupo interessado deve fazer sua inscrição pelo site da Prefeitura e cumprir alguns pré-requisitos, sendo possível contar com o auxílio da Gerência para o cadastro. Os projetos selecionados recebem ajuda por meio de uma assessoria extensionista agroecológica, segundo Edglênia. As práticas agroecológicas buscam uma agricultura ecologicamente orientada, crítica às monoculturas e ao uso de fertilizantes e defensivos químicos, e conectada com os saberes e lutas do campo e dos povos tradicionais.

Hoje, a Gefau contabiliza mais de 90 mil metros quadrados de área produtiva cadastrados e mais de 300 agricultoras(es) com atuação em unidades de todos os tipos. As institucionais públicas somam 73, dez na Regional de Venda Nova. As coletivas comunitárias somam 45, quatro delas na mesma Regional: o próprio Cevae Serra Verde, o Centro Comunitário Serra Verde, a Horta Compartilhada no Centro Cultural Venda Nova e a Horta Comunitária Clareia a Terra, no Parque do Capão. Sobre as duas últimas, falaremos em outras seções desta matéria.

Edglênia, mais conhecida como Neném, aproximou-se dos movimentos sociais relacionados à agroecologia ainda durante a graduação, quando percebeu uma possibilidade de atuação profissional. Desde então, tem buscado trabalhar junto a esses grupos e também aprender com eles, já que há na cidade um grande número de movimentos envolvidos com agricultura urbana. “Quando eu penso no mundo do futuro, no mundo do qual eu quero fazer parte, no mundo que eu quero deixar para as próximas gerações, com certeza é um mundo em que as políticas públicas são de fato construídas com o pé no chão. Eu acho que a cabeça pensa onde o pé pisa”, ela diz, ecoando as reflexões de Leonardo Boff.

“Quando falamos de unidade de produção, não necessariamente estamos falando de horta. Podemos estar falando também de agrofloresta, de pomar, de quintal produtivo, de horto medicinal. As modalidades produtivas podem ser muitas”

A imagem reúne, em primeiro plano, três mulheres sentadas ao chão, em frente a um pequeno canteiro de hortaliças. Ao centro, a mais jovem das três, de pele parda e cabelos presos, sorri de olhos cerrados diante do sol quase a pino. A seu lado, há duas mulheres de cabelos igualmente presos e pele clara. Todas ostentam verduras recém-colhidas.

Da esquerda para a direita: Simone, Clarice e Roseli, na Horta Comunitária Clareia a Terra.

Curas que vêm da horta

Saindo da Estação Venda Nova, na rua Padre Pedro Pinto, vire à esquerda e caminhe por cinco minutos até o primeiro posto de gasolina. Então, vire à direita para chegar na avenida paralela, a Vilarinho. Em anos recentes, muito se ouviu falar sobre as enchentes dessa via, por baixo da qual passa o córrego que lhe empresta o nome e recebe as águas de ao menos outros cinco afluentes da região. Seguindo o curso tortuoso do córrego, a avenida margeia muitos bairros que se estendem das suas bordas para as áreas mais altas.

Ande por mais cinco minutos pela Vilarinho, em direção a Justinópolis, e vire à direita na rua José Ferreira dos Santos, uma leve – mas nada arborizada – subida que, após três quarteirões com casas de muros chapiscados, nos deixa na entrada do Centro Cultural Venda Nova (CCVN). Lá dentro, siga pelo caminho calçado com pedras e sente-se em alguma parte, seja um banco, o anfiteatro ou mesmo o chão: ao redor, há várias árvores de grande porte, plantas menores e muita grama, o que nos dá uma sensação de alívio imediato, tanto pela sombra e frescor quanto pela tranquilidade do espaço.

O CCVN fica no bairro Jardim dos Comerciários e fincou suas raízes ali em 2007 com recursos do Orçamento Participativo, após mobilizações de lideranças comunitárias, agentes culturais e artistas da região. Além da sua parte construída, possui uma extensa área arborizada e ajardinada. É justamente essa característica de parque que mais encanta a arte-educadora Sabrina Damas, 43 anos, funcionária do CCVN há dez anos e coordenadora de um projeto de trocas de experiências sobre plantas medicinais, o Café com Saberes.

O projeto teve início em 2013 e seus encontros acontecem sempre no primeiro sábado do mês com um café da manhã coletivo. Desde o começo, eles são mediados pelo mestre raizeiro Paulino Caldeira Barros, grande conhecedor dos potenciais das plantas medicinais e morador antigo de Venda Nova. A partir dessas reuniões, surgiu a vontade de criar canteiros para produzir mudas e assim nasceu a ideia de uma horta, como lembra Sabrina: “O objetivo inicial era que a gente pudesse fazer mudas para distribuir. Dei esse nome de Horta Compartilhada porque a ideia era promover encontros tipo mutirão, onde todos pudessem mexer, plantar, fazer a manutenção dos canteiros e aí levar para casa o que colhessem”.

No início, o terreno onde a horta seria feita estava tão compactado que só com a enxada o grupo não conseguiu trabalhar, foi necessário passar um tratorito para revolver a terra. Quem levou a máquina, à época, foi um agrônomo da atual Subsecretaria de Segurança Alimentar e Nutricional (Susan). Com essa ajuda, as primeiras mudas foram plantadas e, em 2016, a Horta Compartilhada ganhou vida. Pouco tempo depois, ela passou a ser assistida pelo programa de implantação e manutenção de sistemas agroecológicos da Susan.

A imagem retrata o instante em que, sob um sol forte, uma mulher de pele clara, blusa listrada e calça jeans retira da terra, com suas mãos, alguns pés de hortaliças.

Como parte dos pré-requisitos para receber a assistência, o grupo passou a realizar reuniões periódicas de planejamento por meio das quais era possível saber as demandas de insumos, como esterco e mudas, e também de capacitação. Atualmente, a horta possui plantas medicinais e alimentícias e funciona por meio da adoção de canteiros, dinâmica que busca trazer a vizinhança para dentro do Centro Cultural. “A ideia da Horta Compartilhada era que ela pudesse ser como uma extensão da casa das pessoas. E fazer com que a comunidade se apropriasse do Centro Cultural, o que, para mim, é um dos objetivos daqui”, afirma Sabrina.

Os perfis de quem participa são variados: há em sua maioria adultos, ativos e aposentados, mas também jovens. Pedro, um adolescente de 13 anos, começou a frequentar o projeto levado pela tia. Já dona Graça é uma senhora muito ágil que, num piscar de olhos, faz canteiros até onde o tratorito não revolveu a terra. E seu João é um dos colaboradores mais antigos e constantes, junto com a Lucy. Sabrina conta que todo mundo tem muito carinho com o espaço e busca contribuir com ideias para renovar a cerca, ajudando nos mutirões, compartilhando experiências ou conhecimento sobre as plantas. “Acho que quase todos eles vêm para a horta como um hobby, como uma coisa que faz bem para a vida, para a cabeça, para a mente, para não adoecer”, diz Sabrina. Ainda que as colheitas possam servir para consumo próprio ou mesmo para venda, cultivar é, antes de tudo, um exercício de autocuidado, um modo de manter corpo e mente sãos. Sinal de que as propriedades de cura das plantas medicinais – que inspiraram o nascimento desse projeto – não são obtidas apenas através do seu uso em infusões ou na alimentação, mas também por meio do próprio cultivo, do contato e do trabalho com a terra.

“A ideia da Horta Compartilhada era que ela pudesse ser como uma extensão da casa das pessoas. E fazer com que a comunidade se apropriasse do Centro Cultural, o que, para mim, é um dos objetivos daqui”.

Valores do campo e da cidade

Na frente da casa de Maria Rosa de Souza, dois arbustos saltam para a rua, atravessando as grades do portão marrom e encobrindo parte da fachada. Ao lado da porta da frente, samambaias, avenca, chifre de veado. No corredor lateral, camarões amarelos, espadas-de-são-jorge, orquídeas. No quintal, espécies a perder de vista, entre elas couve, pé de mamão e flor do mato. Essa pequena lista não dá conta nem da metade das plantas que ela cultiva desde que se mudou para o local, há 35 anos. Nascida em Raul Soares, na Zona da Mata mineira, Maria Rosa veio para Belo Horizonte em 1955. Na época, tinha 25 anos e cinco filhos, que vieram com ela e o marido, com quem teve ainda mais quatro. Morou primeiro em Justinópolis, distrito de Ribeirão das Neves, depois na região do SESC, em Venda Nova, e, por último, no bairro Letícia, onde reside atualmente. Com 92 anos, ela leva uma vida ativa, sempre em contato com a família, nos serviços da casa, fazendo exercícios e participando de eventos no SESC e no Centro Cultural de Venda Nova.

Segunda filha mais velha de oito mulheres, foi escolhida pelo pai, Joaquim, para ajudar nas lidas da roça: fazer cesta, carrear, cortar cana, plantar, colher, produzir rapadura. Quando ele morreu, ela tinha 15 anos e assumiu suas tarefas, levando adiante atividades que, no campo, eram mais comuns aos homens. Como a família não podia pagar outra pessoa, saía a cavalo sozinha para vender rapadura a alguns bons quilômetros de casa, na cidade de Rio Doce, momentos de que recorda com admiração e orgulho: “Sou mulher, não sou pedaço, porque desde os sete anos que eu trabalho para ajudar o meu pai”.

A imagem, em um primeiro plano, registra o momento em que duas mulheres utilizam água armazenada em recipientes de plástico para regar verduras. Ambas têm o rosto coberto por máscaras respiratórias de cor preta. Em um segundo plano, à sombra de alguns arbustos, é possível ver uma terceira mulher, de costas, ao lado de insumos utilizados na manutenção da horta.

Na casa de sua família na roça, seu pai reservava a produção de milho, arroz e feijão para a alimentação: “Tinha um caixotão enorme que cabia muito arroz, ele não vendia um caroço. Aquilo ficava de um ano para o outro. Ele tinha medo de vender e faltar”. São hábitos como esse, de outros tempos e outros lugares, que Maria Rosa trouxe para a cidade e adaptou à sua vida aqui, não sem dificuldades: “Eu tinha fogão de lenha, mas os vizinhos começaram a implicar demais com a fumaça. Eu fui criada na roça, eu gosto muito de mexer no fogão de lenha. Faz a comida mais gostosa e mais rápido”.

Aquilo que aprendeu no passado ela também pôde usar com as suas plantas. Elas ficam espalhadas por todo o lote onde vive, como um rio verde caudaloso que refresca, perfuma e acalma sua casa. A exuberância da sua plantação é fruto do seu cuidado e dos filhos, em especial Juá, que faz a manutenção da horta nos dias de domingo e que, segundo ela, é o mais jeitoso com a terra. Algumas das plantas são empregadas na alimentação, outras em cuidados com a saúde, todas sempre destinadas a consumo próprio ou a doações, como também fazia seu pai: “Não, não vendo nada. Dou pros outros. Ainda ontem eu levei um bocado de serralha pra uma colega”.

A casa de Maria Rosa fica em uma rua que liga a rua Padre Pedro Pinto com a avenida Vilarinho, duas vias com fluxo intenso de carros e muito comércio. Antigamente, essa região era parte de uma fazenda cuja sede, hoje uma casa envelhecida, ainda existe no quarteirão. “Aqui não tinha nada, aqui era mato puro, pé de coco. Boi andava por aí afora, cavalo, era um pasto. Os meninos saíam catando coco, aquele coquinho baboso. Mucuri que chama. É um coco amarelo que eles chupam a baba dele”.

Não muito longe dali, estão o Parque Estadual Serra Verde, o SESC Venda Nova e o Centro Cultural Venda Nova, áreas de preservação ambiental que são também espaços de lazer, cultura e educação. Não faz sentido pensar que essas zonas verdes sobrevivem como se fossem um recorte do passado em meio ao presente, mas sim que elas integram a cidade, ganhando sentidos diferentes daqueles de antigamente. Da mesma forma, os saberes e as práticas rurais se adaptam às transformações urbanas e, junto com outros modos de vida, compõem a cidade. É assim que as raízes de Maria Rosa preenchem de verde a sua casa.

“Sou mulher, não sou pedaço, porque desde os sete anos que eu trabalho para ajudar o meu pai”.

A imagem retrata o perfil de uma mulher de pele clara e cabelos castanhos presos. Seu traje consiste em uma blusa listrada de mangas curtas e uma calça jeans. Seus adereços são brincos e um par de óculos. Ao fundo, por trás de uma tela metálica, é possível ver, à sombra de árvores de grande porte, muros de concreto que expõem os limites do terreno.

Roseli Correia da Silva, coordenadora do Núcleo Capão e conselheira no Subcomitê da Bacia do Onça.

Plantar para imaginar melhor

Chegue até a Estação Pampulha e pegue um ônibus da linha 615, Céu Azul B. Cedinho, ele vai no contrafluxo do trânsito intenso e segue vazio, balançando e rangendo seus metais pela longa avenida Portugal e pelas ruas do bairro Céu Azul. Cerca de vinte minutos depois, quando alcançar o cruzamento das ruas Coronel Joaquim dos Santos com a Maria Gertrudes Santos, onde há um grande supermercado de esquina, prepare-se para descer. Desembarque no segundo ponto, caminhe dois quarteirões e vire à esquerda na rua Victor Sanches Dumont. Em poucos metros, você estará às margens do Córrego do Capão, no bairro Lagoa.

Na beira, o barulho da água corrente se mistura aos sons da vizinhança. É possível ver algumas árvores, casas simples, prédios de um conjunto habitacional e uma quadra esportiva. Para chegar ao outro lado, duas pequenas passarelas: por baixo da primeira, corre o leito do Capão, quase transparente, apesar de impuro, e, da segunda, um afluente denso e cinza. Os dois se encontram logo à frente e seguem juntos em direção à Vilarinho. Caminhe mais um pouco, vire à direita na rua 6 e ande algumas casas para chegar à Horta Comunitária Clareia a Terra, que fica no Parque do Conjunto Habitacional do Lagoa, também chamado Parque do Capão.

A área é cercada por uma tela metálica e anunciada por uma faixa: “Espaço Horta Comunitária no Sistema de Agrofloresta”. Lá dentro, os canteiros estão dispostos como raios de luz ao redor de um pé de goiaba, que faz as vezes de sol, mas também provê sombra para quem se senta aos seus pés. Por ali também se amontoam baldes e bombonas usadas para buscar água e regar as plantas.

À esquerda, crescem árvores ainda pequenas e, à direita, ao lado de um muro grafitado, repousa o material orgânico usado como cobertura vegetal. Nos fundos, para além da área cercada, sob um corredor de árvores, passa o Córrego do Capão.

Uma das guardiãs da horta é Roseli Correia da Silva, 49 anos, que dá aulas em uma escola municipal não muito longe dali para crianças entre 9 e 11 anos. Seu envolvimento com a horta remonta a projetos de educação ambiental, em especial As Escolas da Bacia, de 2012, fruto de um mapeamento de instituições de ensino nas proximidades do Capão. Dessa experiência, em parceria com o Projeto Manuelzão, nasceu o Núcleo Capão, um movimento que luta pela requalificação socioambiental desse córrego desde 2013. Roseli é coordenadora do grupo, além de conselheira no Subcomitê da Bacia Hidrográfica do Ribeirão Onça.

O Manuelzão é um projeto de ensino, pesquisa e extensão criado em 1997, dentro da Universidade Federal de Minas Gerais, que trabalha questões de saúde, ambiente e cidadania na Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas. Essa bacia abrange 51 municípios de Minas Gerais, entre eles vários da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Entre suas formas de organização, destacam-se os Núcleos Manuelzão, grupos que buscam realizar projetos de educação ambiental e de gestão das águas em microbacias do Rio das Velhas, além de discutir e elaborar políticas públicas para esses territórios.

A imagem retrata um trecho do Córrego do Capão. Seu leito é densamente rodeado por árvores de grande porte, cujas folhagens projetam sombra no terreno. Em um muro à direita, é possível ler, pintada à mão e em grandes dimensões, a palavra “LULA”.

Córrego do Capão em seu leito natural no bairro Lagoa.

O Manuelzão é um projeto de ensino, pesquisa e extensão criado em 1997, dentro da Universidade Federal de Minas Gerais, que trabalha questões de saúde, ambiente e cidadania na Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas. Essa bacia abrange 51 municípios de Minas Gerais, entre eles vários da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Entre suas formas de organização, destacam-se os Núcleos Manuelzão, grupos que buscam realizar projetos de educação ambiental e de gestão das águas em microbacias do Rio das Velhas, além de discutir e elaborar políticas públicas para esses territórios.

O Capão nasce no Céu Azul, o bairro mais populoso de Venda Nova, e percorre o Lagoa, o Piratininga e o Lagoinha antes de desaguar no Córrego Vilarinho, um caminho de 2,75 quilômetros feito, quase todo, em leito natural. Na sua passagem pelo Lagoa, há uma área de preservação ambiental com mais de 16 mil metros quadrados que foi votada no Plano Diretor da cidade, aprovado em 2019. “É uma área que precisa de plano, ela não tem projeto de lei, é um parque não implantado. Então, está sujeito a bota-fora”, explica Roseli. Para mobilizar a comunidade no entorno do parque e marcar presença no território, o Núcleo Capão criou ali a Horta Comunitária.

A horta ganhou corpo depois que foi selecionada pelo programa de implementação e manutenção de hortas da Susan. A primeira assistência recebida foi o cercamento da área, em dezembro de 2021. Depois vieram as chuvas de janeiro, que encharcaram o solo e, em fevereiro, foi feita a preparação da terra. A Rede emprestou o tratorito para revolver a área, enquanto a Gefau deu orientações para o planejamento dos canteiros e o plantio das mudas. Outra parceria foi feita com a Articulação de Resíduos Orgânicos (ARO), iniciativa popular de 2021, focada na reciclagem de resíduos orgânicos, que forneceu cobertura vegetal para proteção do solo.

Essa construção coletiva é algo que Roseli frisa: “As relações que a gente mantém são fruto da metodologia do Manuelzão, pensar nos parceiros, nas redes de colaboração, de articulação”. Ela também cita as alunas e os alunos de paisagismo do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) Santa Luzia, que fizeram o croqui de implantação da horta em sistema de agrofloresta. É um método que combina o cultivo agrícola e o plantio de árvores, diversificando as espécies em um determinado terreno e promovendo produtividade e proteção ambiental. Esse grupo também conseguiu 1.500 mudas que foram parcialmente assentadas em parceria com o Pomar BH, um projeto nascido em 2017 que articula mutirões para plantio de árvores, em especial frutíferas, em espaços públicos da cidade.

Quando visitei a horta, ainda não havia ponto de água instalado, o que obrigava o pessoal a encher os baldes na garagem de uma das vizinhas e carregá-los até os canteiros, processo repetido de manhã e de tarde. Diariamente, o grupo se reveza para molhar as plantas, entre eles o Henrick Tsade, 25 anos, uma das primeiras pessoas a abraçar o projeto. Além do cultivo diário, Henrick, que é multiartista, também faz grafites em muros do entorno do Parque, levando a arte para as ações socioambientais do Núcleo Capão. São intervenções como essas que nos ajudam a imaginar outras cidades, como diz Roseli. “A população só pensa em asfalto, ela não consegue imaginar que aqui pode ser uma área de parque. A gente precisa construir esses imaginários”.

A imagem exibe, em um primeiro plano, três mulheres de pé diante de um canteiro de hortaliças. Duas delas utilizam bonés para se protegerem do sol a pino, e todas têm o rosto coberto por máscaras respiratórias. Sua atenção é voltada ao manuseio de maços de verduras recém-colhidas. Em um segundo plano, são retratadas edificações simples de um ou dois pavimentos. À esquerda, em um muro de concreto aparente, ao lado da pintura em spray de um punho em riste, é possível ler a frase “SALVE O CÓRREGO DO CAPÃO”
  • PRUSSIANA FERNANDES

    Jornalista e organizadora do projeto Atravessar BH, que realiza caminhadas por Belo Horizonte. Mestra e doutoranda em Comunicação Social pela UFMG, pesquisa textos e narrativas de espaços urbanos.

  • DANIELA PAOLIELLO

    Artista visual e doutora em artes. Pesquisa as relações entre corpo e natureza através da fotografia. Entende a câmera fotográfica como dispositivo capaz de desencadear acontecimentos, produzir o real e não apenas registrá-lo.