PAIRANDO ENTRE MEMÓRIA E REALIDADE
Como o Aeroporto Carlos Prates protagoniza, há 78 anos, a história e os desafios modernos da Regional Noroeste.
Na manhã de 6 de agosto de 1898, um grupo de homens caminhava a passos firmes em direção ao gabinete da Repartição de Terras e Colonização da Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas de Minas Gerais, abrigado no Palácio da Liberdade, este sob os céus da recém-inaugurada Cidade de Minas (1897). História e memória se misturam para contar que subiram rapidamente a escadaria principal do Palácio, fundida em elegante estilo art nouveau, bem conservada até hoje. Dentre os homens estava o engenheiro civil e de minas, Carlos Leopoldo Prates, e, naquela manhã, a sua assinatura como Inspetor de Terras e Colonização era aguardada ansiosamente. Do gabinete, era possível correr os olhos pelos inacabados jardins da Praça da Liberdade, que, desde 1898, era o grande pano de fundo das principais decisões políticas a serem tomadas na jovem capital mineira, tendo seu esplendor impressionado a forasteiros e os cerca de 10 mil habitantes que davam sentido e suor ao antigo Arraial de Curral del Rei. Eram pessoas importantes – os da escadaria e os do Arraial – e a ocasião não menos: sacramentou a implementação de uma vasta zona colonial nos subúrbios da Cidade de Minas, composta por cinco núcleos autônomos: Carlos Prates, Américo Werneck, Bias Fortes, Adalberto Ferraz e Afonso Pena. A Carlos Prates era a mais antiga e próxima ao centro da cidade, sendo a gênese do que hoje entendemos por Regional Noroeste de Belo Horizonte. Seria também o nome escolhido para um personagem singular da vida e memória belo-horizontina, o Aeroporto Carlos Prates, cuja história nos permitirá perambular e entender um pouco mais da memória urbana, afetiva e social da capital e da Regional Noroeste antigas e atuais.
Há exatos 78 anos, o Aeroporto Carlos Prates é testemunha ativa da memória dos complexos processos urbanos e sociais que erigiram a região Noroeste da cidade.
O espaço aéreo que compreende a Regional Noroeste de Belo Horizonte ajuda a contar a história da cidade de diferentes maneiras. Às vésperas do Estado Novo (1937), os objetivos de industrialização e de modernização eram a tônica daquela BH de outrora. Até então, decolar rumo aos céus de Belo Horizonte só era uma façanha possível a partir de dois locais: o antigo campo de aviação do Prado Mineiro e a base de operações de pousos e decolagens da Pampulha, embrião do Aeroporto da Pampulha. Em 1936, os governos do estado e da capital iniciaram a construção de uma terceira opção, em área periférica, mas próxima ao Centro: nascia o Aeroporto Carlos Prates. Embora ele tenha esse nome, não está localizado no bairro xará, o que confunde um bocado de gente. O expoente progressista da região Noroeste de Belo Horizonte está situado, na verdade, no bairro Padre Eustáquio, à rua Ocidente, nº 100. O local ocupa um generoso naco de terra de 547.586,99metros quadrados.
Há exatos 78 anos, o Aeroporto Carlos Prates é testemunha ativa da memória dos complexos processos urbanos e sociais que erigiram a região Noroeste da cidade. Não é exagero compreendê-lo em sua capacidade metronômica de marcar o ritmo do cotidiano dessa infinidade de gente – mais precisamente, boa parte dos 337.351 mil habitantes da Regional. A frequência das atividades às quais ele se destina e os seus respectivos reflexos acabam, de uma forma ou de outra, passando pela cabeça das pessoas em alguma hora do dia. Ou sobre elas, literalmente.
Mato, gente e um aeroporto que nasce
“Antes desse aeroporto, isso tudo aqui era mato. Mas nesse mato já existiam pessoas, já existiam histórias e memórias antes deste ser estranho”, explica Neusinha Santos, uma senhora de olhar fixo e tom assertivo, dona de forte ligação com a região Noroeste. São 50 anos de história, conhecendo cada canto da região, seja como moradora, vereadora por mais de 20 anos (entre 1989 a 2012) ou integrante do Coletivo Cultural Noroeste BH. E era muito mato mesmo. O atual terreno do Aeroporto Carlos Prates fazia parte da então fazenda Vila Celeste Império São José, uma imensa porção de terra que pertencia ao Coronel Alípio de Mello e sua família desde os primeiros assentamentos na região. Alípio de Mello era ávido entusiasta da aviação e figura carimbada das iniciativas em Belo Horizonte. Em 1936, doou pessoalmente parte de suas terras ao poder público para que fosse construído o Aeroporto Carlos Prates. Situado no cume de um dos maciços de terra que circundam a Regional Noroeste, foram construídas uma pista de 930 metros de extensão e outra de 810 metros noutra direção. A partir de 1974, passou a ser administrado pela Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero). Atualmente, o Aeroporto conta com três pátios de estacionamento, com cerca de dez posições. Ao longo e ao redor das pistas, estão instalados dez hangares, que prestam serviços de hangaragem, manutenção e construção de aeronaves, bem como dois postos de abastecimento licenciados pelo município por meio de convênio.
“Antes desse aeroporto, isso tudo aqui era mato. Mas nesse mato já existiam pessoas, já existiam histórias e memórias antes deste ser estranho”
Memórias e o inevitável crivo do tempo
Toda e qualquer memória existe por si só. Entretanto, etéreas que só elas, demandam algo de comunitário, traços sociais que se configuram somente a partir do nosso convívio social com outras pessoas. Apesar de todo o imbróglio que envolve o ontem e o hoje das atividades no Aeroporto Carlos Prates, seria errado considerar que ele sempre tenha representado o mesmo papel simbólico ou que não tenha sido um personagem fundamental para a construção da memória coletiva de boa parte da região Noroeste. Os moradores mais antigos da Regional consideravam o campo de aviação como uma área de acesso comum, cara a eles e às suas infâncias, que os permitia, inclusive, cruzar a pé a pista de pouso e decolagem para ganhar o mundo que despontava do outro lado da antiga fazenda Vila Celeste Império.
Infâncias e vidas conduzidas de maneira simples, como se o tempo não fizesse tanta questão de atropelar as coisas com a mesma força qual a sentimos hoje. Os caminhos abertos pelo Aeroporto eram um atalho natural para os jovens, como os que os levavam até a Escola Estadual Professor Moraes, uma das primeiras na região e que segue de pé até hoje. Ao retornarem para casa, os meninos faziam uma parada obrigatória em um enorme gramado que existia próximo à pista para correr atrás da bola. Em dia de vento bom, a pedida era soltar papagaio a tarde inteira. Entre as meninas, o lazer no entorno do Aeroporto ficava por conta do encontro com as amigas ou durante as intensas partidas de queimada e rouba-bandeira. Os adultos costumavam cortar passos pela pista para ganhar tempo quando iam até aos armazéns, como o do Seu Said, situado à rua Pará de Minas. Compravam e estocavam mantimentos em tempos de recursos escassos, ditadura à porta e de dificuldades comuns a tantas vidas em uma região periférica. Aos domingos, os caminhos entre a religiosidade e o Aeroporto se misturavam, quando os moradores subiam ao alto da rua Itamarati, bem aos pés da pista, próximo à Praça Tejo, de onde a vista alcança a Serra do Curral. Lá ainda está a Capela de Cristo Rei, local onde o ilustre Padre Eustáquio – o “Padre Taumaturgo” – celebrava missas. Àqueles que podiam dar-se ao luxo de gastar um pouco mais, o programa era pegar uma matinê nos cines São Carlos, Azteca, Padre Eustáquio e Progresso, localizados ao longo da antiga via Estrada de Contagem, atual rua Padre Eustáquio.
Embora todas essas lembranças tenham um lugar especial na memória das pessoas, as reconfigurações de uma cidade-organismo passariam a colocá-las à prova.
Decerto, um dos pontos altos da antiga comunhão entre a população da Regional Noroeste e o Aeroporto Carlos Prates seja mais bem representado por meio daquela que é a principal memória coletiva, marca quase unânime a todos, sobre o que acontecia nos céus aos sábados e aos domingos. Seguem vivas as lembranças deixadas pelas tardes de paraquedismo que marcaram época na região. Pergunte a qualquer pessoa que tenha passado a infância ou algum período da vida adulta na Noroeste – ou até mesmo fora dela, afinal, as pessoas vinham de todos os lugares! – e ela te dirá que ver gente saltando de paraquedas no Aeroporto Carlos Prates faz parte da memória e da experiência coletiva daquela época. Eles saltavam sozinhos ou em grupo, quando executavam piruetas e formações corajosas no céu em formatos de estrela ou círculo. Nem tudo era perfeito e acidentes aconteciam durante esses shows. Ocorrências que ajudaram a construir ainda mais, positiva ou negativamente, a memória daqueles que comungavam do Aeroporto da Noroeste como o seu quintal de casa. Episódios que tornaram corriqueiras, quase que aguardadas, as cenas de homens e mulheres caindo nas imediações ou fora do campo de aviação, sob o telhado das casas ou pendurados nas galhas dos abacateiros e mangueiras do entorno.
“Essas cenas marcaram a minha infância e a de muitas pessoas na região. Naquela época era impossível não se entreter com os saltos e com as tardes que passávamos ali”, numa pitada saudosista, explica Munish*, ator e diretor de teatro, nascido e criado na Regional há mais de 40 anos. De quando em quando, alguém gritava: “Caiu um paraquedas lá na frente!” e todo o mundo corria para ver. Por determinados períodos dos tempos cronológico e psicológico que nos regem, o Aeroporto foi um personagem estimulante na vida da Regional Noroeste. Embora todas essas lembranças tenham um lugar especial na memória das pessoas, as reconfigurações de uma cidade-organismo passariam a colocá-las à prova. Por mais valorosas que fossem, elas teriam de passar, impreterivelmente, pelo crivo de tempos que só caminham para frente e dos interesses que surgiam dentro e fora dos limites do Aeroporto Carlos Prates. Uma disputa permanente entre a memória e a realidade.
De tão próximos, distantes: anatomia de uma não relação
Ao longo da sua história, o Aeroporto Carlos Prates ultrapassou o conceito de ser apenas um campo de aviação e cunhou para si um caráter memorial, implicando importância e presença física simbólica que dialogam de maneiras distintas com os recortes do tempo dentro da Regional. A partir dos anos 1960, o olhar admirativo dos moradores e moradoras da Noroeste para com ele passou a ser cada vez mais questionado e questionador. Conforme o setor aéreo e o entorno da região urbana se expandiam, todo o magnetismo daqueles finais de semana no campo passou por um processo terminal de ressignificação, abrindo espaço para questionamentos concretos quanto a sua função social dentro de uma Noroeste sempre agitada por transformações. “Para que ele ainda serve, afinal?”
O Aeroporto de hoje segue sendo o mesmo de outrora; entretanto, tudo ao seu redor já deixou de ser o mesmo há muito tempo.
A grande questão é que o desenvolvimento do Aeroporto Carlos Prates não conseguiu acompanhar o ritmo das relevantes inversões socioespaciais em infraestrutura, serviços públicos e dos modos de vida e organização social pelos quais a região passou. Se antes era um protagonista afetivo, construtor e detentor de memórias, agora as transformações o coadjuvavam em um papel cada vez mais questionado, não pertencente ao tempo e ao espaço ocupado por ele. Em médio e em longo prazo, as áreas que envolvem o Aeroporto Carlos Prates se transformaram em núcleos densamente povoados e verticalizados. Tais mudanças caracterizam um velho fenômeno conhecido do urbanismo: a concentração no entorno dos aeroportos por classes sociais de menor poder aquisitivo que se mantiveram nas franjas urbanas, sujeitas aos impactos negativos gerados pelas operações aeroportuárias, como a desvalorização dos terrenos e imóveis, os ruídos constantes do tráfego aéreo e os trágicos acidentes que afetam o setor de tempos em tempos.
De dez acidentes com aeronaves em Belo Horizonte, nove aconteceram a partir do Aeroporto Carlos Prates. Entre 2004 e 2020, foram contabilizadas mais de 50 ocorrências envolvendo voos que partiram do Aeroporto: 20 acidentes, com 5 mortos e 6 feridos, 39 incidentes (nome dado a ocorrências de menor proporção) e 2 acidentes com danos patrimoniais consideráveis em que aviões caíram sobre as casas. A área do entorno do Aeroporto convive diariamente com a incerteza e o incômodo da poluição sonora, insegura toda vez que uma nova aeronave levanta voo ou aterrissa. Em que pese todas as memórias construídas com e por ele, além da sua inegável importância histórica para os primórdios da região, a realidade urbana e social mostra que os impactos causados pelas atividades aeroportuárias já não condizem com o atual momento da Regional. O Aeroporto de hoje segue sendo o mesmo de outrora; entretanto, tudo ao seu redor já deixou de ser o mesmo há muito tempo.
Há um sentimento generalizado, inclusive compartilhado pelos que defendem a sua permanência na Regional, de que o Aeroporto foi perdendo a conexão com a comunidade ao longo do tempo, tornando-se cada vez mais um ser ensimesmado, voltado apenas para a sua realidade intramuros. “À época em que o Aeroporto foi construído ele fazia sentido, havia o intuito de crescimento e desenvolvimento previsto para a região Noroeste e para a capital como um todo. Entretanto, apesar dos períodos iniciais que marcaram a memória de tanta gente que tinha nele uma atração de infância e de um outro momento da vida urbana, ele não cumpriu essa função do desenvolvimento. Mudaram-se os interesses, os contextos da região em que ele está e acabou por se tornar um aeroporto ensimesmado, voltado em grande parte do tempo histórico para os interesses privados das empresas e das pessoas que usufruem dele intramuros (...) as pessoas que atuam lá hoje apenas fazem uso do espaço. Não há uma troca com a comunidade e boa parte dos frequentadores não reside na Noroeste, raros são os que pertencem para entender o contexto um pouco melhor. Reclamações históricas como a poluição sonora e a insegurança não são levadas em conta. Claro… nada disso aí acontece sobre as cabeças deles e em seus respectivos bairros de residência fora da Noroeste”, desabafa Neusinha Santos.
Assim, estabeleceu-se uma não relação, ao passo que o distanciamento se tornou tão evidente e dispersou grande parte do apreço afetivo que ainda existia nessa relação Aeroporto e comunidade. Munish acredita que a situação mudou bastante. “Aquela imagem e memória de uma região segura e idílica acabou sendo maculada por uma vivência de bairro e por relatos de insegurança, conflito entre os interesses de o que a população e o que os usuários do Aeroporto querem. Os riscos sempre existiram e hoje eles já não se pagam mais, não faz sentido termos um aeroporto dentro de um bairro, repleto de casas e prédios, funcionando sobre nossas cabeças. Desde que aumentaram os voos particulares, começamos a ter cada vez mais problemas como o barulho, os acidentes e os horários de funcionamento. Luto para que as atividades sejam desativadas e o espaço ocupado de forma que cumpra uma real função social para a Noroeste e toda a metropolitana de BH”, conclui enfaticamente.
Falando em um “mineirês” genuíno, Emerson* é outro que argumenta com propriedade sobre esse estranho paradoxo causado pelo distanciamento entre o Aeroporto e a realidade da região. A rua Bom Retiro, repleta de casas antigas e de gente simples, é o seu lugar de fala há quase 50 anos e está literalmente aos pés do Aeroporto, na cabeceira sul da pista. De tão próxima, dali observamos juntos algumas decolagens, sendo possível ler detalhes pintados na fuselagem das aeronaves. “Você escuta todo mundo falar de progresso, hoje nada disso existe mais. Nenhum benefício. Ninguém defende mais, pois vimos que ele atende apenas aos interesses das empresas particulares. Nós, moradores, não temos acesso à prática, que é cara e elitista, não há qualquer iniciativa de integração com a comunidade como possíveis cursos ou oferta de empregos. Você não vê ninguém da região trabalhando no Aeroporto, só gente de outras regiões. E também não podemos usar o espaço do parque e da pista, que estão completamente abandonados ou cercados. Há uma divisão bem clara por parte do Aeroporto: o que está dentro da cerca eles cuidam e se interessam. A partir dela, já não fazem a menor questão, alegam que cabe à Prefeitura todo e qualquer suporte. Então qual é mesmo a função social dele para nós?”.
Se no passado a Noroeste enfrentou intensos processos de especulação que definiram o seu território e os moldes da ocupação urbana, hoje o cenário é completamente oposto. Por todos os lados há imóveis com placas anunciando a venda ou tentando atrair possíveis compradores.
Outra nuance que questiona a memória trata da desvalorização imobiliária na região. Se no passado a Noroeste enfrentou intensos processos de especulação que definiram o seu território e os moldes da ocupação urbana, hoje o cenário é completamente oposto. Por todos os lados há imóveis com placas anunciando a venda ou tentando atrair possíveis compradores. Os moradores acreditam que o processo de desvalorização do entorno causado pelos impactos macro das atividades do Aeroporto já é algo histórico e irreversível. E mesmo em um cenário de eventual desativação da área, o processo de recuperação precisará ser bem elaborado e discutido para que traga alguma mudança efetiva para eles.
“Os vizinhos já não aguentam, dá um desgosto na gente. Há casos de tráfico de drogas e até homicídios no entorno, que está abandonado, cheio de mato e entulho, acabando com a imagem. Lamentamos muito pelo que a região se tornou. Infelizmente não conseguimos sair daqui, não conseguimos vender nada e o poder público nada investe em segurança e infraestrutura, somos uma região de classe média baixa. E nem deveríamos ter de querer sair, para falar a verdade. As vidas das pessoas e de toda a região deveriam ser mais importantes que as atividades de uma meia dúzia no Aeroporto. Não acredito que vão desativar nada, pelo contrário. Já falaram muita coisa, muito papo, mas sei que quem tem dinheiro manda”, conclui Emerson.
Simbiose entre os céus e a terra firme
Mas há sempre dois lados em uma história. O Aeroclube de Minas Gerais é o principal representante do Aeroporto Carlos Prates, umbilicalmente ligado à existência do campo há mais de 80 anos. Em um cenário de conflitos, tanto pelo espaço físico e simbólico das memórias quanto pela real função social da continuidade do Aeroporto, questionar a existência de um é questionar a do outro, impreterivelmente. Fundado em 15 de novembro de 1936, ainda no Aeroporto da Pampulha, o Aeroclube teve como objetivo formar pilotos privados e comerciais, além de quadros para a Aviação Civil e Militar. Nasceu no contexto histórico de uma capital que crescia aos trancos, da periferia ao centro, que buscava se modernizar e que enxergava na aviação uma alternativa para diversificar e justificar um potencial crescimento econômico e urbano na Regional Noroeste. Tão logo cortada a faixa da inauguração em Carlos Prates, o Aeroclube migrou suas atividades para o local. A partir de então, iniciou-se uma relação íntima entre seus respectivos interesses que perdura até hoje.
A capital havia se tornado um polo de formação de profissionais para a crescente indústria da aviação brasileira. Durante esse período inaugural, o Aeroclube também servia ao governo de Minas Gerais, atuando como o parceiro logístico na execução de serviços de administração do Estado, como base nas rotas da Secretaria de Saúde Pública no combate às endemias, transportando medicamentos e alimentos aos pontos longínquos das Gerais. Em 7 de janeiro de 1974, o Aeroporto Carlos Prates passou a ser administrado pela Infraero e, em agosto de 1995, foi assinado convênio entre a União e a Prefeitura de Belo Horizonte para a cessão de uma área de 100 mil metros quadrados, onde foi construído o Parque Ecológico Maria do Socorro Moreira, hoje em situação precária. Atualmente, o Aeroclube segue dedicado à formação privada de pilotos da aviação desportiva e de pequeno porte, e à manutenção de aeronaves. Compartilha o espaço com outras três escolas de aviação e quatro empresas com oficinas especializadas e hangares particulares. Auxilia na gestão do campo, que ainda serve de base para treinamento de pilotos de helicóptero da Polícia Militar de Minas Gerais, da Polícia Federal e do Corpo de Bombeiros Militar do estado, além de empresas civis.
Para Enedina Valverde, vice-presidente do Aeroclube e rosto conhecido desde 1985 pelos que frequentam o espaço, a relevância prática e simbólica do Aeroporto não se mede nem se questiona: simplesmente é. Ao refletir sobre o atual momento ao qual todos ali dentro encaram, “seria um absurdo querer tirar ou desativar o Aeroporto daqui, local que gera cerca de 300 empregos diretos e escolas que precisam do espaço para a formação dos pilotos”, atividade entendida como “fundamental e uma retribuição importante à sociedade civil”.
Paira entre os que defendem a permanência das atividades no Carlos Prates uma imagem subjetiva daquilo que elas de fato simbolizam à população da região Noroeste. Um olhar permeado por elementos como a memória coletiva e a retórica histórica para invocar um sentimento de merecimento legitimado, transcendente. “Para nós é muito importante o papel que exercemos há mais de 80 anos. A comunidade precisa entender que não existe toda essa insegurança que ela alega. A questão do barulho é uma minoria que se manifesta, a maioria do entorno aceita as atividades”, argumenta Enedina, passionalmente. “Se isso aqui não continuar como Aeroporto, prejudicará todo mundo que mora ao redor de alguma forma. Um novo Parque? Vão administrar como o atual, tomado pelo mato e abandono? E se construírem prédios? Verão a sobrecarga no trânsito das principais vias. Não podemos ir para aeroportos grandes, eles funcionam em outra lógica comercial: a atividade de formação não conseguiria se adequar nem ter as condições necessárias para funcionar”, justifica Enedina.
Contudo, a distante relação que se estabeleceu entre o Aeroporto e a comunidade da Regional Noroeste é o único dialeto compreendido por ambos os lados. As pessoas que convivem dentro do Carlos Prates reconhecem que, historicamente, o local perdeu a sua aura provinciana e um tanto do apelo memorial na vida das pessoas além das cercas e dos muros. Alguns culpam o tempo, sempre ele, que cisma em passar e ressignificar tudo e todos que se atrevem a cruzar o seu caminho. Acreditam que algo se perdeu de dentro para fora, numa esquina do compromisso entre o Aeroporto para com o mundão que o cerca há oito décadas. Esse fenômeno não é algo exclusivo do Carlos Prates. Historicamente, as atividades aeroportuárias não costumam se preocupar tanto com as áreas externas aos seus limites. Talvez pelo caráter seleto – ou elitista? – dessas atividades, os praticantes parecem adotar uma visão antolhada, absorta nos intramuros e que, a conta-gotas, vai se distanciando de uma já fragilizada relação. Distâncias e disputas no campo físico e no simbólico entre Aeroporto e Noroeste que se transformaram ao longo dos anos, configurando hoje uma luta sem margem de recuo por parte da população contra o empreendimento e vice-versa.
“Acho o Aeroporto uma necessidade, são 80 anos aqui. Concordo que, da nossa parte, tínhamos de nos aproximar da comunidade, isso se perdeu com o tempo e tantas discussões. O pessoal que mora ao redor se sente acuado, nunca mais veio nos visitar e nós também deveríamos fazer esse esforço de nos abrirmos mais. Incentivar iniciativas sociais, retribuir de alguma outra forma, isso eu acho que devemos fazer. Já discutimos internamente algumas ações, mas nunca fizemos”, analisa Cecília Espínola, uma senhora de sorriso simpático e traços delicados, pilota há mais de 20 anos no Carlos Prates.
São argumentos que afluem no espectro da memória. Para o lado de dentro da pista, refletem instintos e esforços de uma coletividade que, à sua maneira e fiel aos seus interesses específicos, busca se fazer valer e ocupar o lugar que acredita ter – e tem – na memória do ontem e no presente da Regional Noroeste. Ainda que soem subjetivos, percebe-se que tais razões partem de um ponto importante para muitas pessoas que ali sedimentaram significados às suas vidas ao longo de todo esse tempo, assim como aqueles que vinham aos domingos ver os paraquedistas caírem do céu. Entendem que também são merecedoras desse espaço que paira na memória coletiva do local, mesmo que as suas justificativas colidam com a realidade à sua volta. Esse complexo desencontro é o principal reflexo de uma questão que, intimamente, todas as partes conhecem bem a resposta: há como interesses tão antagônicos coexistirem?
Noroeste e Aeroporto: testemunhas do ontem e do hoje. E do amanhã?
Durante toda a sua história, a Noroeste foi calejada por grandes desafios. Hoje, vê-se diante de novas urgências, lutando por mais sustentabilidade, por melhorias da mobilidade urbana e pela preservação de seu patrimônio ambiental, social e cultural. A discussão acerca do futuro do Aeroporto Carlos Prates flerta com esse sorvedouro. Parte da sociedade civil da região se articula em coletivos e movimentos populares para exigir a desativação das atividades no Aeroporto. Enxergam no terreno um lugar que, revitalizado para o uso público coletivo, poderia reduzir os impactos ambientais causados pelo adensamento populacional e pelas diversas atividades econômicas realizadas na cidade. Dentre as nove regionais, a Noroeste é a que possui o menor número de áreas verdes, apenas duas.
A proposta do governo federal é encerrar as operações do Aeroporto e negociar o terreno com o setor imobiliário. Já a Prefeitura de Belo Horizonte, que, até o fim de 2021, não tinha interesse em assumir a operação, resolveu mudar de posicionamento e receber a administração do local, após terem sido “procurados por uma entidade importante para manter os trabalhos que estão lá (...) por isso mudamos de opinião e estamos dispostos a receber o aeroporto, fazer projeto de utilização dele mais eficiente e mais rentável, não vamos fazer empreendimento imobiliário”, alegou o então vice-prefeito de Belo Horizonte, Fuad Noman, em audiência pública na Câmara dos Deputados em 16 de dezembro de 2021. Seja qual for o seu destino, o Aeroporto Carlos Prates sempre terá sido um elemento fundamental na história da Regional Noroeste. Não a explica por completo, mas encurta alguns dos caminhos para tal. Testemunha constante e fiel, com lastro suficiente para relatar parte da história da região e, por que não, da sempre irrequieta Belo Horizonte, através de tantos períodos marcantes e das inúmeras transformações que acompanhou ao longo de 80 anos.
Enquanto escrevo as últimas linhas, ouço o rasgado de mais uma aeronave passando sobre a minha cabeça. Não foi a primeira e nem a segunda, não será a última também. É assim o dia inteiro, todos os dias. Confabulo sobre como o próprio Aeroporto Carlos Prates enxergaria todas essas disputas entre memória e realidade que o cercam. Como um bom mineiro, acredito que estaria ressabiado com o que fizeram dele: um ser estranho, indesejado, um inóspito objeto político. Talvez preferisse acompanhar a situação agarrado às memórias daqueles sábados e domingos nos quais foi importante e significou algo diferente do que é hoje; de quando a partir dele, pelos seus gramados e ao seu redor, as pessoas se divertiram, se encontraram, perambulavam entre seus caminhos e usufruíram da sua existência como se usufrui da de um importante companheiro em tempos mais simples.
- Ambos os entrevistados optaram por ser identificados apenas pelo primeiro nome.
Enquanto escrevo as últimas linhas, ouço o rasgado de mais uma aeronave passando sobre a minha cabeça. Não foi a primeira e nem a segunda, não será a última também.