A foto mostra três mulheres sorridentes do Quilombo Família Souza. Uma está mais ao fundo, no meio, e usa um vestido estampado. A que está a direita usa os cabelos pretos soltos e uma blusa azul claro. A que está à esquerda é a única que olha para a câmera. Ela usa óculos e usa uma blusa cinza com uma estampa no meio. Ao redor das mulheres estão galhos de árvores.

KILOMBO FAMÍLIA SOUZA

Ancestralidade e resistência.

TEXTO
Leo Bryan
FOTOS
Carina Aparecida

Vinte e quatro de junho de 2019, Dia de São João. Gláucia, Simone e Alessandra, moradoras da rua Teixeira Soares, no bairro de Santa Tereza, viajam de Belo Horizonte a Além Paraíba, município localizado na Zona da Mata mineira, às margens do rio Paraíba do Sul.

É a primeira vez que as três primas visitam a cidade ribeirinha. Não estão ali a passeio, mas precisam tirar o resto do dia para se recompor – afinal, a viagem foi longa: quase 400 quilômetros de rodovia percorridos na BR-040. Hospedam-se em frente à Matriz de São José, igreja inaugurada no final do século XIX.

Na manhã seguinte, descansadas, encontram a cidade com as ruas cheias. Crianças correm de um lado para o outro – é dia de gincana. Por um instante, contemplam a paisagem que já foi a terra de seus ancestrais: ruas com calçamento de pedra, carros estacionados à sombra das árvores, pequenas casas de um pavimento ou dois.

Rota de tropeiros desde o final do século XVIII, a região atrai diversas famílias com as notícias do crescente extrativismo de minerais preciosos. Na beira do rio Paraíba do Sul, por volta de 1784, é erguido o primeiro cais de madeira, que recebe o nome de Porto do Cunha. Assim nasce a vila de São José de Além Paraíba, que, em 1882, já reconhecida por lei como município, empossa seu primeiro prefeito: Joaquim Luiz de Souza Breves, comendador e coronel que dá nome à praça onde é construída a Matriz de São José.

É justamente em direção à igreja que as primas decidem seguir enquanto aguardam o horário de funcionamento do cartório da cidade – local onde, supunham as três, se desincumbiriam da tarefa que as levava até ali. Mas há um propósito naquela parada: Gláucia, Simone e Alessandra sabem que, assim como os registros em cartório, os livros de batismo são também um importante repositório da memória dos moradores de antigas freguesias, vilas e cidades.

É como se os moradores da rua Teixeira Soares se dessem conta de que, de alguma maneira, haviam se tornado o que já eram desde o princípio: quilombolas.

Ao redor da foto estão as paredes de um cômodo, a porta está aberta. Ao fundo do cômodo há um degrau de azulejos azuis e uma prateleira. Acima da prateleira estão imagens santas e um vaso com folhas de Espada de São Jorge. Na parede há um terço. Na parte esquerda do cômodo tem uma mesa com panos brancos e azuis. Em cima da mesa, imagens santas, docs, plantas e outros adornos. Acima da mesa há uma prateleira forrada com um pano e uma vela acesa.

Ao chegarem na igreja, que já está aberta, o grupo é recebido por assistentes do padre Valdemar, que, compulsando um dos livros de assentamentos de batizados, encontram o seguinte termo: “Aos quinze de junho de mil oitocentos e setenta e nove baptisei solenemente a Petronillo, nascido a trinta e um de maio pp, filho natural de Joanna, escrava de Joaquim Luiz de Souza Breves, forão padrinhos Miguel e Possidônia, escravos do mesmo senhor: dos que, para constar, fiz este assento que assignei. O Vigário*”.

O registro, firmado pelo cônego Francisco Bernardino de Souza em livro dedicado a batismos de escravos, aponta o nascimento de seu bisavô, patriarca da família Souza. As primas souberam, ainda, que Joanna, mãe de Petronillo, havia servido como escrava a um dos fundadores da cidade, o próprio coronel Breves – aquele mesmo cujo nome é emprestado à praça onde, naquele instante, estavam reunidas.

O acervo que se encontra sob a guarda de Padre Valdemar contém, ainda, em um livro à parte, o registro do casamento de Petronillo e Elisa da Conceição, assinado pelo vigário Carloto Fernandes da Silva: “As doze horas do dia oito de setembro de 1902, nesta Matriz de S. José de Além Parahyba em minha presença e das testemunhas abaixo nomeadas, compareceram os contrahentes Petronillo de Sousa e Elisa da Conceição, solteiros, elle filho de Joanna, de vinte e três nascido, Ella filha de Cezaria da Conceição, nascida e baptisada na Freguesia de Angustura, reside na dita Freguesia, em Volta Grande, de quinze nascida; as quais contrahentes, em tudo habilitados e sem impedimento algum, se receberam com palavras de presente por marido e mulher sendo testemunhas presentes Augusto Leite Leonel, official de Justiça e sua mulher Angelica de Barros Leonel pessoas de mais conhecidas, nesta cidade. Para constar lavrei este termo”.

Naquele instante, Gláucia, Simone e Alessandra se entreolham. O sentimento de que a viagem a Além Paraíba não havia sido em vão é então compartilhado pelas três.

A foto traz uma senhora de cabelos grisalhos e presos em rabo de cavalo, com uma blusa estampada, segurando com as duas mãos uma folha de Espada de São Jorge. A senhora olha para câmera e sorri. Atrás dela, um muro com um grafitti de dois homens negros que usam a mesma roupa e azul, preta e amarela e seguram o mesmo ramo de flores, simbolizando Comes e Damião.

Gláucia Vieira, uma das lideranças do Kilombo Souza, entre as figuras de Cosme e Damião. Arte de Gabriel Rios.

De vila a quilombo: a autoidentificação pela família Souza

Trazendo consigo as certidões, as primas regressam a Belo Horizonte com o elo final que as conecta, como descendentes, a Petronillo de Sousa e Elisa da Conceição – que, após o casamento, adota o nome de Elisa de Sousa –, considerada por todos a primeira matriarca da família. Com a comprovação material da escravidão imposta a seus ancestrais, o grupo dá um passo relevante, do ponto de vista simbólico, às transformações que já haviam se iniciado, mas que ainda se desdobrariam em novos marcos e acontecimentos no horizonte das atuais gerações que residem na então chamada Vila Teixeira Soares. Vale destacar que, à época da viagem a Além Paraíba, seus moradores eram ameaçados de despejo, mesmo tendo em mãos o registro da compra do terreno onde moravam.

Tais mudanças, pontua Gláucia Cristine Martins de Araújo Vieira, 56 anos, bisneta de Petronillo e Elisa de Sousa, estão longe de serem concluídas. Sua compreensão, acrescenta a seu relato a líder comunitária, “ainda está em processo de amadurecimento entre as gerações recentes da família”. É como se os moradores da rua Teixeira Soares se dessem conta de que, de alguma maneira, haviam se tornado o que já eram desde o princípio: quilombolas. Um significado profundo emerge dessa constatação: uma revelação que opera sobre a identidade dessas pessoas, desde sua origem, em seus antepassados, até seus corpos e suas vivências no presente – o que requer a construção conjunta de formas de enfrentamento a um estigma ainda vivo na sociedade: a escravidão.

Dentre as transformações mencionadas por Gláucia, duas apresentam particular relevância. A primeira delas é introduzida pela Portaria n. 126, editada pela Fundação Cultural Palmares em 16 de julho de 2019, por meio da qual foi certificada, pelo órgão competente da administração pública federal, a autodefinição pela Família Souza como comunidade remanescente de quilombo. A partir desse marco, os moradores da rua Teixeira Soares, que até então empregavam o termo vila quando se referiam ao espaço onde a família reside desde as primeiras décadas do século XX, passam conscientemente a usar a expressão kilombo para designar seu território. A opção pela grafia com a letra k, vale registrar, se deve à intenção de remeter à origem da palavra – que, segundo a antropóloga Bárbara Oliveira Souza, autora da dissertação Aquilombar-se: panorama histórico, identitário e político do movimento quilombola brasileiro (2008), provém das línguas banto kimbundo (kilombo) e umbundo (ochilombo), possivelmente faladas pelos ancestrais da família antes e até mesmo depois do cativeiro –, gesto que, no Brasil, adquire um sentido de resistência e preservação de elementos culturais étnicos. Segundo Gláucia, utilizar o k “é tornar explícita, desde o nome da família, sua conexão com o território africano”, tanto no plano material quanto no plano espiritual.

A partir desse marco, os moradores da rua Teixeira Soares, que até então empregavam o termo vila quando se referiam ao espaço onde a família reside desde as primeiras décadas do século XX, passam conscientemente a usar a expressão kilombo para designar seu território.

A segunda transformação consiste no reconhecimento do Kilombo Família Souza como patrimônio cultural imaterial de Belo Horizonte. Aprovado por unanimidade em 18 de novembro de 2020, às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra, o registro foi concedido durante a 304ª sessão ordinária do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte (CDPCM-BH).

Atualmente, encontram-se em tramitação o processo de demarcação e titulação do território ocupado pelo Kilombo Família Souza, perante o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e, ainda, o processo de reconhecimento do quilombo como patrimônio cultural de natureza imaterial pelo Estado de Minas Gerais, perante o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG).

A foto mostra uma senhora de cabelos pretos e amarrados. ela olha para a câmera e sorri. Ela usa óculos, blusa cinza com uma estampa no meio, calça preta e chinelos. Ela se ampara no final de um muro: o muro à direita traz um grafitti de uma agricultora mexendo na terra.

Maria Adélia dos Reis. Arte de Sérgio Anjo.

O conceito de quilombo e seus deslocamentos

Não faltará quem se pergunte: “Mas um quilombo em pleno século XXI? E, ainda, localizado no seio de uma metrópole como Belo Horizonte?”. Tais questionamentos, embora ainda frequentes, partem de uma concepção de quilombo consolidada no período colonial e que não mais se aplica aos dias de hoje. São insurgências que decorrem não apenas de um senso comum ainda a ser desconstruído, mas de uma série de outros fatores, como a invisibilização secular da luta quilombola. Assim formuladas, ambas as perguntas revelam, também – afirma a especialista em política cultural Patrícia Brito –, “a persistência de uma suposição equivocada de que seriam os quilombos que se assentariam no espaço da cidade, e não o contrário”.

Para lançar luz a essas questões, é necessário compreender, em primeiro lugar, que o conceito de quilombo – seja nas perspectivas antropológica e historiográfica, seja na perspectiva legal – se encontra em processo de contínua transformação.

Bárbara Oliveira Souza relembra a definição de quilombo formulada em 1740 por meio de correspondência entre a Coroa Portuguesa e o Conselho Ultramarino: “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em partes despovoadas, ainda que não tenham ranchos levantados, nem se achem pilões neles”. Tal concepção, que, segundo a pesquisadora, “se fez presente em diversos outros documentos legais”, é característica do período anterior à abolição, em que o quilombo é apresentado como transgressão e, por isso, objeto da repressão estatal.

Com o advento da Lei Áurea, que, em 1888, institui a abolição formal do regime escravocrata, a categoria quilombo deixa de existir enquanto ilícito, sem que, no entanto, nenhuma reparação seja proposta em contrapartida àqueles que foram escravizados. Além disso, nenhuma medida sequer é tomada no sentido de conceder o acesso à terra a tais populações, que seguem, assim, sem ter a posse sobre seus territórios reconhecida como legítima. A vocação excludente das políticas agrárias no Brasil, presente na Lei de Terras de 1850, que, em seu artigo 1º, veda a aquisição de terras devolutas “por título que não seja o da compra”, segue, dessa maneira, inalterada, como observa a antropóloga.

A foto traz a imagem de uma senhora em contraluz, ajoelhada em frente de um altar com uma das mãos estendidas. Neste altar, coberto por um pano com bordados de flor, algumas xícaras, imagens santas e uma vela acesa.

Tem início, a partir de então, um longo período de silenciamento do Estado brasileiro a respeito das comunidades quilombolas dispersas por todo o país. Tal postura de completa omissão é interrompida somente cem anos após a abolição, com os trabalhos desenvolvidos pela Assembleia Constituinte e a subsequente promulgação da Constituição Cidadã em 1988.

A legislação brasileira e os “remanescentes das comunidades dos quilombos”

Prevê o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), em seu artigo 68: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Há, assim, com o processo de redemocratização do país, uma inversão fundamental: o quilombo deixa de ser matéria de proibição e passa a ser incluído na categoria dos direitos a serem assegurados pelo Estado, a quem incumbe o dever de promover a titulação dos territórios ocupados pelas comunidades quilombolas.

E de que modo deverá o Estado cumprir esse mandamento constitucional? Visando regulamentar o artigo 68 do ADCT, foi editado, pelo então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva – que, à época, contava com Gilberto Gil à frente de seu Ministério da Cultura –, o Decreto n. 4.887/2003. Prevê a norma, em seu artigo 3º: “Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

Além de atribuir ao Incra a competência para promover a delimitação e a titulação dos territórios quilombolas, tal decreto introduz, em seu artigo 2º, o próprio conceito de “remanescentes das comunidades dos quilombos”: “Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.

A foto mostra uma mulher em segundo plano, com blusa azul e cabelos parcialmente presos. Ela sorri pra câmera e mostra uma foto em preto em branco. A foto está em primeiro plano e mostra a imagem em preto e branco de uma mulher ajoelhada dando as mãos para um bebê com vestido que começa a andar.

Simone guarda com carinho a foto de sua avó, Maria de Souza.

Outro aspecto relevante introduzido pelo artigo 2º do Decreto n. 4.887/2003, observa Bárbara Oliveira Souza, diz respeito à “autoatribuição”. De acordo com o critério da autoatribuição, são, para todos os efeitos, considerados como quilombolas os grupos étnico-raciais que assim identificarem a si próprios. Ou seja, o juízo de identificação como quilombo é uma competência a ser exercida pela própria comunidade, e não por terceiros como o Estado ou outros atores da sociedade civil. Dentre os atributos a serem considerados para tanto, são mencionados no decreto os seguintes: trajetória histórica própria, relações territoriais específicas e presunção de ancestralidade negra relacionada à resistência da comunidade diante do que o próprio Estado reconhece como “opressão histórica”.

Não restam dúvidas, portanto, de que o ordenamento jurídico brasileiro remete ao presente o tratamento dispensado à categoria do quilombo, ao mesmo passo em que promove uma atualização de seu conceito diante de um cenário em que a reivindicação pela terra – pauta fundamental da luta quilombola – é, após cem anos de invisibilização e silenciamento, reconhecida como direito.

o juízo de identificação como quilombo é uma competência a ser exercida pela própria comunidade, e não por terceiros como o Estado ou outros atores da sociedade civil.

A foto mostra um detalhe do altar que fica em um dos cômodos do quilombo. Ao centro, uma vela branca acesa apoiada em um píres preto. Dos lados direito e esquerdo, duas xícaras. Atrás, imagens de preto-velho. Presos na parede, quadros pequenos com imagens de santas.

O quartinho de santo é um dos espaços de religião do Kilombo Família Souza.

Quilombos em Belo Horizonte: um panorama local

Segundo Selma dos Santos Dealdina, secretária executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e organizadora da obra Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas (2020), existem hoje, dispersos pelos 26 estados brasileiros, mais de 6 mil quilombos, dos quais, até o momento, pouco mais de 3 mil já receberam certificação de autoidentificação pela Fundação Cultural Palmares.

Muitos desses quilombos se encontram localizados em áreas urbanas, mas não porque seus territórios foram assentados no interior das cidades. Na verdade, são os próprios centros urbanos que, em sua dinâmica de expansão, estendem seus bairros e loteamentos sobre áreas já ocupadas por comunidades tradicionais cujos laços com a terra remontam, frequentemente, a séculos atrás. É o caso de dois dos quilombos reconhecidos dentro do espaço urbano de Belo Horizonte – Luízes e Mangueiras –, cuja ocupação tem início já no século XIX. Trata-se, portanto, de comunidades anteriores à fundação da própria cidade.

Em Belo Horizonte, além do Kilombo Família Souza, são três as comunidades quilombolas, que, até o momento, foram reconhecidas pelo poder público como patrimônio cultural imaterial: Luízes, em Vila Maria Luiza, no bairro Grajaú (Regional Oeste); Mangueiras, localizado no quilômetro 13,5 da rodovia MG-020, próximo ao bairro Aarão Reis (Regional Nordeste); e Manzo Ngunzo Kaiango, no bairro Paraíso (Regional Leste). “Há, no entanto”, afirma Patrícia Brito, “outros quilombos em vias de autoidentificação, como é o caso dos Matias, cujo território, assim como o da Família Souza, é localizado no bairro de Santa Tereza, na Regional Leste da cidade”.

A foto mostra duas mãos abertas e estendidas segurando uma foto grande. Na foto, em preto e branco, 10 pessoas, sendo 4 adultos e 6 crianças. Todos usam roupas comuns, salvo uma das crianças que está ao centro, uma menina vestida com um longo vestido branco e uma coroa de flores na cabeça.

Os percursos do Kilombo Família Souza

O território ocupado pelo Kilombo Família Souza, localizado entre as ruas Pouso Alegre, Formosa, Salinas e Professor Raimundo Nonato, hoje se estende por cerca de 2.500 metros quadrados. Seu acesso se dá pela rua Teixeira Soares, mas, originalmente, era pela rua Salinas que os primeiros moradores entravam e saíam do terreno.

Elisa de Sousa, que, juntamente com seu marido Petronillo, é a primeira a habitar o lote, teria passado a vida inteira acreditando que o apelido “Asa de urubu”, dado à sua habitação pelos vizinhos, se devia à forma como o telhado era construído sobre o adobe das paredes, semelhante a uma asa de pássaro. Sua família, no entanto, está certa de que se trata de uma alcunha racista, e de que a escolha do nome continha uma alusão à cor da pele dos que ali moravam.

Muitos desses quilombos se encontram localizados em áreas urbanas, mas não porque seus territórios foram assentados no interior das cidades. Na verdade, são os próprios centros urbanos que, em sua dinâmica de expansão, estendem seus bairros e loteamentos sobre áreas já ocupadas por comunidades tradicionais cujos laços com a terra remontam, frequentemente, a séculos atrás.

Estima-se que Elisa e Petronillo chegaram a Belo Horizonte por volta de 1910. Após a mudança para a capital, o sustento da família se dá, em um primeiro momento, por meio do cultivo da terra: cana de açúcar, alface, couve e banana são alguns dos gêneros produzidos. Vale lembrar que o terreno, decorrente do loteamento da antiga colônia Américo Werneck, se localizava em área suburbana destinada por Aarão Reis à instalação de cordões verdes para o abastecimento da capital.

Essa era, portanto, a principal atividade desenvolvida na região, que, devido a características topográficas, à falta de acesso a serviços de saneamento básico como água e esgoto e à proximidade do chamado “Hospital do Isolado”, espaço de tratamento de doenças infecciosas, certamente não era valorizada no mercado imobiliário da época. É provável que, por esse motivo, a venda do terreno ao casal não tenha envolvido uma soma considerável. Ainda assim, relata a família que foram necessários aproximadamente dez anos para que Elisa e Petronillo quitassem o valor da transação.

A família, em poucos anos, já se estende aos sete filhos do casal: Sebastiana, Maria, Eurídices, Eurico, Odette, José e Joaquim. Às mulheres, é delegada a produção de gêneros agrícolas. Petronillo, por sua vez, passa a procurar outras fontes de renda, como, por exemplo, a carpintaria. Nesse período, presta serviços não apenas no bairro, mas em toda a cidade. Narra a família que, em uma de suas empreitadas como carpinteiro, teria sido contratado para a construção da Igreja da Boa Viagem, na região central de Belo Horizonte.

A foto mostra uma fotografia antiga sendo segurada por duas palmas de mãos abertas. Na fotografia antiga, é possível ver um homem de short curto encostado em sua bicicleta. Esse homem parece estar em uma praça devido às construções e árvores que vemos ao fundo da foto. A imagem da foto está em preto e branco.

Com o falecimento de Petronillo em 1921, após a luta contra a tuberculose, Elisa e sua família dão continuidade aos serviços para saldar a aquisição do terreno, o que ocorre dois anos depois, em 1923, data em que é firmado o contrato de compra e venda.

A partir de então, os filhos crescem, alguns se mudam para outras partes do país. Elisa, a matriarca da família, se casa novamente, desta vez com Edson Pinho, com quem tem três filhos. Vem a falecer em 1968, poucos anos após a conclusão da terraplenagem e da instalação da rede de esgoto na rua Teixeira Soares, processo que envolveu a prefeitura municipal e um mutirão entre os próprios moradores.

É neste momento que, no entendimento da família Souza, os avanços na infraestrutura e as melhorias urbanísticas implementadas na rua Teixeira Soares começam a despertar o interesse imobiliário na região. Assim, em 1970, e, posteriormente, em 1983, descendentes dos antigos proprietários dos lotes vendidos a Petronillo, Elisa e alguns de seus vizinhos recorrem a ações judiciais com a finalidade de demarcar terrenos que, alegadamente, seriam seus por direito de herança. Em uma dessas ações, segundo Gláucia, o processo teria corrido à revelia de sua família, que, assim, foi privada da oportunidade de contestar a documentação apresentada em juízo, ou até mesmo de alegar que houve a aquisição da propriedade mediante usucapião. Afirma a líder comunitária que a tese sustentada pelos autores das ações deixa de considerar transações anteriormente celebradas com compradores de boa-fé, como é o caso de seus bisavôs, cujos netos e bisnetos guardam até hoje a documentação original que atesta sua propriedade sobre o terreno.

Kilombo Souza resiste

No momento em que é surpreendida com uma ordem de despejo, em 2018, a família Souza decide recorrer a organizações da sociedade civil, como a Associação Comunitária do Bairro de Santa Tereza (ACBST) e a organização Salve Santa Tereza. Os quilombolas contaram, ainda, com o suporte de uma extensa rede de apoiadores oriundos de diversas áreas – antropólogos, urbanistas, o advogado popular Joviano Maia e, ainda, parlamentares como Áurea Carolina, Andréia de Jesus, Bella Gonçalves e Cida Falabella.

Como resultado dessa articulação, foi criado o movimento Teixeira Resiste, que promoveu diversos eventos com a finalidade de dar visibilidade à causa, conquistar apoiadores e levantar recursos para a defesa da família Souza, como a Feijoada da Vila Teixeira, no dia 5 de maio de 2019, e o Arraial da Teixeira, em 15 de junho daquele mesmo ano. Este último evento, realizado com o fechamento da rua, atraiu grande público e contou com a apresentação da banda de forró Teixeira Resiste e da quadrilha Arraiá do Morro. No dia 21 de julho, no mesmo local, foi promovida a Virada da Resistência – paralelamente à programação oficial da Virada Cultural de Belo Horizonte –, em que se apresentaram Flávio Renegado, DJ Rodrigo, Luiza da Iola, Bloco Pata de Leão e Circo Gamarra. Houve, ainda, nessa mesma data, sarau, roda de conversa e roda de pagode, além da presença das matriarcas dos quilombos Manzo Ngunzo Kaiango, Luízes, Pinhões e Reinado Treze de Maio. O evento também reuniu um grande contingente de adeptos às reivindicações do Kilombo Família Souza.

A foto mostra uma senhora de cabelos presos e óculos. Ela está com os braços em 90 graus observando as folhas de uma planta. Ela usa uma blusa cinza com estampa no meio e uma calça preta. Diversas árvores e plantas emolduram a senhora.

Segundo Gláucia, além de toda a articulação que se formou em torno de sua família, foi fundamental o auxílio da ancestralidade, constantemente invocada por Dona Lídia, a atual matriarca, e também pelas demais gerações em alguns dos locais sagrados do quilombo – o quartinho do santo e a casinha de Exu: “Eu sou uma pessoa que tem muita fé. Então, o importante pra nossa permanência nesse espaço eu acredito que é a fé e a força dos nossos antepassados. Eu acho que a gente tem que acreditar nessa força do ancestral, nessa força dos orixás. Você tem que ter sempre fé e acreditar. Igual eu falo: se é seu por direito divino, nada é por acaso”.

“Exu”, acrescenta a líder comunitária, “rapidamente abriu caminhos”: em meio a essa luta, a autoidentificação como quilombo, solução adotada pela família Souza diante do iminente risco de despejo, foi prontamente certificada pela Fundação Cultural Palmares. O conflito contou até mesmo com a intervenção do então prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, que, em 22 de julho de 2019, participou pessoalmente das tratativas em audiência de conciliação realizada no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Como resultado das negociações, a família Souza pôde permanecer em seu terreno, ao passo que, aos autores da ação de despejo, o município de Belo Horizonte ofereceu, como contrapartida, a geração de Transferência do Direito de Construir (TDC) sobre o terreno do quilombo – título que confere ao beneficiário, facultativamente, o direito de exercer o potencial construtivo em outra região ou vendê-lo a terceiros.

A alegação de que a família Souza tenha resgatado a trajetória de seus antepassados para permanecer em suas casas, por si só, é carente de qualquer propósito, considerando que a luta quilombola tem como uma de suas principais diretrizes justamente a reivindicação do direito ao próprio território. Nessa perspectiva, é mais uma vez a mobilização em torno da terra que, associada ao legado étnico, cultural e religioso dos moradores da rua Teixeira Soares, confere a uma comunidade de origem negra – no coração de uma metrópole e em pleno século XXI – o sentido de quilombo.

Segundo Patrícia Brito, “quem ganha com o reconhecimento do Kilombo Família Souza como patrimônio imaterial é sobretudo o próprio município de Belo Horizonte”. Além de preservar um importante bem cultural, a cidade tem a oportunidade de repensar a história de sua própria constituição, “dessa vez não mais sob um viés eurocêntrico, consolidado na crença de que se trata de um espaço construído apenas por europeus – italianos, espanhóis, portugueses – e seus descendentes”: “É inegável isso, por mais que a história oficial te mostre outros elementos de como essa construção foi feita, extraoficialmente você consegue perceber elementos fundadores que atestam que essa cidade foi construída por pretos. E de onde são esses pretos? São pretos que vieram de vários lugares de Minas Gerais ou que já estavam aqui, assim como os povos originários”.

No mesmo sentido, Jéssica Santos, geógrafa e autora de (Re) existências na cidade a partir de insurgências quilombolas: a trajetória do kilombo Souza de Belo Horizonte, dissertação de mestrado defendida em 2021 no Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), considera a capital mineira “uma cidade que se inicia por meio da invisibilização. Para que ela esteja assim hoje, dessa maneira que conhecemos, muito foi arrancado, substituído, silenciado”. Afirma a pesquisadora que o reconhecimento do Kilombo Família Souza e, mais recentemente, do Largo do Rosário como patrimônios culturais imateriais pelo município de Belo Horizonte “é uma oportunidade de conhecermos as histórias para além daquelas oficialmente contadas”.

O conjunto chamado de Largo do Rosário, importante referência cultural e religiosa da população negra de Curral Del Rey no século XIX, era formado pela Capela de Nossa Senhora do Rosário, inaugurada em 1819, o pátio em seu entorno e o cemitério contíguo, inaugurado em 1811, que chegou a abrigar 60 sepulturas de negros escravizados e livres. O espaço, localizado onde hoje se encontram as ruas da Bahia e dos Timbiras, no bairro de Lourdes, Regional Centro-Sul da capital, foi demolido durante a execução do projeto de Aarão Reis, ocasião em que a população negra que residia na região foi forçada a abandonar suas moradias.

Em reportagem veiculada pelo jornal Estado de Minas, o pároco da Rede Jesus Missionário e curador do Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (Muquifu), Mauro Luiz da Silva – cujo trabalho de pesquisa foi fundamental ao reconhecimento do Largo do Rosário como patrimônio cultural imaterial de Belo Horizonte –, afirma que resgatar essa memória é registrar que o centro da cidade já foi ocupado pelos negros: “Nós já estivemos aqui, já moramos aqui, mas fomos enviados para as periferias e favelas”.

A mesma realidade histórica é atestada pela trajetória dos descendentes de Petronillo e Elisa de Sousa, que, desde a década de 1970, vêm desafiando crescentes interesses para que deixem seus territórios. No entanto, ao contrário do ocorrido com as populações negras desalojadas em meio à construção da capital, a resistência oferecida pela família Souza e a articulação formada por sua rede de apoiadores fizeram com que suas gerações mais recentes pudessem permanecer na rua Teixeira Soares. Para Jéssica Santos, o Kilombo Família Souza “continua sendo um ponto de resistência ainda vívida (...), seja por promover o encontro, a celebração de seus festejos juninos na rua, seja pela diversidade de seu quintal. Um espaço das confluências, da tradicionalidade, (...) ainda não ‘domado’ pela urbanização desenfreada. Um espaço que traz marcas da história e que representa a cidade que queremos para o futuro: uma cidade com espaços de convivência!”

Conhecer a história do Kilombo Família Souza contribui para que seja possível imaginar Belo Horizonte como uma cidade mais diversa desde sua origem. Um cenário em que muitos de seus atores foram invisibilizados e suas trajetórias, por vezes, apagadas – mas que ainda oferece perspectivas de novas leituras. De acordo com Patrícia Brito, criar outras formas de olhar para o nosso patrimônio cultural representa “um passo fundamental para que o município de Belo Horizonte repense suas políticas públicas a partir dessa diversidade”. É necessário reivindicar que a implementação de novos programas pelo poder público seja orientada pelo compromisso de garantir que comunidades que, historicamente, tiveram o acesso à cidade negado sigam ocupando seus territórios e tenham seu legado étnico, cultural e religioso valorizado como bem coletivo.

criar outras formas de olhar para o nosso patrimônio cultural representa “um passo fundamental para que o município de Belo Horizonte repense suas políticas públicas a partir dessa diversidade”.

  • Optamos por reproduzir os documentos do acervo da Matriz de São José sem qualquer edição, observando fielmente o teor das certidões obtidas pela família Souza.
A foto mostra uma folha preta pintada em um muro branco. É a imagem de uma folha da planta comigo-ninguém-pode, símbolo de guarda e proteção da família Souza. Galhos de árvore estão a frente da imagem, mas embaçados, o que não atrapalha a visão da pintura.

Comigo-ninguém-pode, símbolo de guarda e proteção da família Souza.

  • LEO BRYAN

    Escreve sobre cultura e literatura. Tem um coração dividido entre os prédios antigos do Centro e as ruas do Colégio Batista, bairro onde cresceu e, depois de rodar um pouco, voltou a morar.

  • CARINA APARECIDA

    Tem seus trabalhos em audiovisual, dança e fotografia inspirados na relação memória e ancestralidade. Habita o bairro Paraíso, mas a vida começou lá no Cicobe, Novo Progresso e Jardim Montanhês. "Noroeste é nóis, pra sempre no coração!"