A foto mostra uma das casas da Cidade Ozanam de frente, com 3 cadeiras antigas de madeira vazias em frente à casa. Em primeiro plano, uma pequena árvore em frente a ela. O céu está azulado com algumas nuvens. A casa é branca e tem uma pintura desgastada. Alguns detalhes na empena e a janela estão pintados de verde e o telhado é de cerâmica em duas águas.

A CIDADE DENTRO DA CIDADE

A vida parece funcionar sob outro tempo na Cidade Ozanam, bairro construído para ser uma obra de caridade e que, ainda hoje, mantém um ritmo quase interiorano ao lado de uma das vias mais movimentadas de Belo Horizonte.

TEXTO
Juliana Afonso
FOTOS
Bruna Brandão

A vida de uma adolescente é marcada por certos clichês. A minha contou com a experiência de acompanhar alguns amigos que montaram uma banda de rock. A expectativa era serem descobertos por um grande produtor e então levados ao estrelato. Humilde. Eu fazia parte do clichê, claro, garantindo presença em praticamente todos os ensaios.

Os encontros aconteciam na casa do baterista, no bairro Ipiranga, Regional Nordeste de Belo Horizonte. O barracão dos fundos tinha sido revestido com caixas de ovos para aliviar os ouvidos dos vizinhos durante as tardes de quarta-feira. Era para lá que eu ia, uma vez por semana, em um trajeto que durava mais ou menos 30 minutos partindo da minha casa, no bairro Silveira.

Não, a banda não ficou famosa. Mas foi por causa dela que eu aprendi a gostar de caminhar. Foi ali que eu comecei a andar pela cidade admirando casas antigas, gradis cobertos por trepadeiras, praças com banquinhos de madeira e muros pintados com cores pouco usuais. Aprendi a olhar com atenção para as ruas da minha própria cidade. Sempre que possível, saía com antecedência para poder perambular por lugares que eu ainda não conhecia.

No trajeto até o ensaio, um lugar sempre chamava a minha atenção. Eu percebia que havia chegado quando passava por uma rua cheia de casinhas pequenas com frontões triangulares. Era visível a mudança de cenário. Apesar de não ter nenhum aviso, eu sentia como se passasse por um portal imaginário. No muro que marcava o final daquela via, uma placa redonda com um desenho de buzina e uma faixa vermelha na diagonal pedia silêncio sem usar uma única palavra.

Ao virar à direita, a rua se abria como um cone. De um lado, uma casa enorme, cheia de janelas com vasos de flores no batente. Do outro, uma igreja com um painel santo feito de azulejos. À frente, uma rotatória com uma árvore no centro. A partir daquela praça, uma sequência de ruas com as mesmas casinhas de frontões triangulares, uma atrás da outra.

A placa que pedia silêncio a algumas quadras de distância parecia fazer efeito sobre todo o bairro. Apesar de estar do lado da avenida Cristiano Machado, uma das mais movimentadas da cidade, o barulho não chegava. O que se ouvia eram as conversas dos vizinhos, que estendiam suas cadeiras de plástico nas calçadas, ou o ruído da televisão sintonizada na Sessão da Tarde atravessando as paredes das casas.

A foto mostra uma das casas da Cidade Ozanam de frente. O céu está azulado com algumas nuvens. A casa é branca e tem uma pintura desgastada. Alguns detalhes na empena e a janela estão pintados de verde e o telhado é de cerâmica em duas águas. Em frente a ela, cresce um pequeno canteiro de flores vermelhas e amarelas.

Não era apenas o barulho que parecia não chegar ali, mas os próprios veículos. Era comum ver crianças brincando de corda na rua. Quando passava um carro, elas corriam para a calçada na frente das casas, ampla o suficiente para seguir a brincadeira ou dar lugar a novos passatempos, criados pelas mentes mais criativas.

Eu passava muitas horas percorrendo as ruas daquele bairro até então chamado Cidade Ozanam. Buscava entender por que os carros ainda não tinham tomado conta do local, por que ainda havia casas se as ruas ao redor estavam cheias de prédios, enfim, buscava entender a existência daquele lugar. Como era possível uma vivência quase interiorana dentro da cidade grande? Era um mistério a ser decifrado. Algumas das respostas que encontrei estão nas páginas desta revista.

A cidade dos pobres

As sensações que eu tinha quando caminhava pelo bairro apontavam para a direção correta: o local realmente foi construído para ser uma cidade dentro da cidade. O seu objetivo, no caso, era ser a cidade dos pobres. “Ela foi idealizada justamente com esse propósito, de acolher as pessoas que precisavam de uma casa”, afirma o presidente da Cidade Ozanam, Obra Unida da Sociedade São Vicente de Paulo (SSVP) em Belo Horizonte. Lucas Natalio Valeriano, 25 anos.

O nome Ozanam é uma homenagem ao Beato Antônio Frederico Ozanam, um dos sete fundadores da Sociedade São Vicente de Paulo. Para eles, São Vicente de Paulo, padroeiro de todas as obras de caridade, era um modelo de santidade a ser seguido.

A SSVP tem um papel fundamental nessa história. Desde a década de 1900, os confrades vicentinos tinham o desejo de construir uma vila para abrigar as pessoas em situação de vulnerabilidade. O projeto começa a tomar forma três décadas depois, sob a gestão do então prefeito Otacílio Negrão de Lima, inspirado por uma visita ao Abrigo do Cristo Redentor, em Salvador (Bahia).

O confrade Furtado de Menezes, fundador da Sociedade São Vicente de Paulo em Belo Horizonte, foi o grande idealizador da Cidade Ozanam. O bairro seria construído em um terreno de 98.032 metros quadrados doado pela Prefeitura, em uma região considerada afastada do centro. No espaço, seriam erguidas 108 casas para moradia, um pavilhão central para solteiros, mendigos e indigentes, uma capela, um edifício para o grupo escolar, um ambulatório médico, uma farmácia, um armazém e alguns comércios.

“O imóvel cedido é para que nele se construa a cidade dos pobres, denominada ‘Cidade Ozanam’, não podendo ser-lhe dado destino diferente”, dizia a escritura que marcava a doação oficial do terreno por parte da Prefeitura, assinada em 17 de julho de 1936. As obras começaram no ano seguinte e foram possíveis graças às doações de vicentinos de todas as partes, que se uniram em uma enorme campanha de solidariedade, e o trabalho de operários da iniciativa pública e privada.

A Cidade Ozanam foi inaugurada no dia 3 de abril de 1938. A missa de celebração foi realizada alguns meses depois, no dia 24 de julho, com a presença de cerca de 2 mil pessoas. Apesar do lançamento, apenas uma parte do projeto original estava de pé. Nessa primeira etapa, foram construídos o pavilhão central, o edifício para o grupo escolar, alguns espaços para comércio e 59 casas para moradia.

A Sociedade São Vicente de Paulo foi fundada na França, em 1833, por sete amigos que se inspiravam na doutrina de São Vicente de Paulo. Eles acreditavam que a missão da igreja era servir aos mais pobres e passaram a vida realizando ações missionárias e de caridade. A Sociedade chegou ao Brasil em 1872 e a Belo Horizonte em 1919. Atualmente, a SSVP está presente em mais de 150 países. Confrade é o nome dos homens que são membros. As mulheres são chamadas de Consócias.
A foto, em preto e branco, mostra uma rua de longe e as casas da Cidade Ozanam enfileiradas em perspectiva. No meio da rua, há uma grande aglomeração de pessoas, ali presentes para a festa de inauguração da Cidade Ozanam. Também se vê alguns carros típicos do final da década de 1930.

Festa de inauguração do bairro Cidade Ozanam, em 1938.

Acolhimento vs. rejeição

Belo Horizonte vivia um período de franca expansão. Muitas pessoas vinham de outras cidades para trabalhar na capital e, junto com o crescimento da elite, veio também o aumento da população marginalizada. Os jornais da época destacavam o número cada vez maior de pessoas em situação de rua e retratavam essa população – na maior parte das vezes – como um mal a ser eliminado.

Nesse contexto, as expectativas sobre a Cidade Ozanam cresciam. A construção do bairro e o tratamento católico que seria dado aos moradores e moradoras foram idealizados como a solução para a mendicância. A polícia tinha instruções do próprio prefeito para encaminhar os mendigos ao local e, em maio de 1937, o então Chefe de Polícia, Ernesto Dornelles, expediu uma portaria sobre serviços de Assistência, Fiscalização e Repressão à Mendicância e Vadiagem e Encaminhamento de Menores Abandonados: “(...) o serviço compreenderá o fichamento e identificação de indigentes, mendigos, vadios e menores abandonados”.

Nem todos que trabalhavam na Cidade Ozanam tinham a mesma visão. Lucas conta que o bairro era uma grande obra assistencial e que tinha como proposta acolher todos os necessitados. “Falam muito dos mendigos, mas muitas pessoas vinham de cidades mais pobres para trabalhar em Belo Horizonte. Essas pessoas muitas vezes não tinham onde morar e acabavam virando mendigos se não conseguiam emprego. A ideia central era que essas pessoas utilizassem essa casa durante um tempo e, depois que elas já estivessem bem estabelecidas, pudessem deixar essa casa com outra pessoa para continuar a obra de assistencialismo”, explica.

Buscava entender por que os carros ainda não tinham tomado conta do local, por que ainda havia casas se as ruas ao redor estavam cheias de prédios, enfim, buscava entender a existência daquele lugar. Como era possível uma vivência quase interiorana dentro da cidade grande?

Moradia emprestada

Cinquenta e seis casas populares compõem as ruas do bairro Cidade Ozanam. As paredes das residências, feitas de tijolos e barro, possuem pilastras retangulares que enfeitam, de maneira simples, as fachadas, e modestos ornamentos geométricos nas empenas que dão para a rua. As portas e janelas de madeira se abrem para uma calçada ampla que hoje é cimentada, mas já foi coberta por terra. Quando inaugurada, todas as casas tinham as mesmas cores. Depois, os moradores deram às suas paredes os mais diversos tons. Há pouco mais de dez anos, parte das casas foi repintada de branco e verde. Renata Kelly Alves de Oliveira, 36 anos, mora em uma dessas casas. “Minha mãe sempre passou muita dificuldade. Morava de aluguel, de favor, na casa dos outros. Colocou meus irmãos pra trabalhar na casa dos outros pra eles terem lugar de ficar, pra poderem morar e estudar”, conta.

Ela lembra que a mãe teve de frequentar diversas reuniões para conseguir uma vaga em uma das residências. Na época, a família morava de favor na casa de um tio, na Pedreira Prado Lopes, no bairro Lagoinha. A oportunidade de se mudarem para o bairro surgiu há 25 anos. Mãe, pai e quatro filhos passaram a morar no local sem sofrerem com o peso do aluguel, já que as casas são cedidas às famílias por meio de um contrato de comodato (uma espécie de empréstimo gratuito) com a Sociedade São Vicente de Paulo.

O trabalho de assistência não para na cessão das casas: as famílias recebem doações de cestas básicas e são acompanhadas mensalmente por vicentinos. “Eles fazem visitas domiciliares. Infelizmente, como muitos de nossos membros têm mais de 60 anos, reduzimos as visitas a quase zero durante a pandemia, mas ainda assim a gente fez acompanhamento via WhatsApp”, explica Lucas. O acompanhamento é feito em parceria com os profissionais do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS).

“O imóvel cedido é para que nele se construa a cidade dos pobres, denominada ‘Cidade Ozanam’, não podendo ser-lhe dado destino diferente”, dizia a escritura que marcava a doação oficial do terreno por parte da Prefeitura, assinada em 17 de julho de 1936.

A foto mostra um homem de cabelos curtos, óculos e blusa azul de gola e mangas compridas sentado com os braços encostados em uma mesa de madeira e as mãos a sua frente. Atrás do homem está uma parede cheia de fotos.

Lucas Natalio Valeriano, presidente da Cidade Ozanam, Obra Unida da Sociedade São Vicente de Paulo (SSVP) em Belo Horizonte.

Jovelina Alves Martins, 82 anos, e José Martins Alves (o Zé Brito), 67 anos, são testemunhas do apoio dado pelos vicentinos. O casal mora em uma das casas históricas do bairro há 24 anos e encontra formas de demonstrar sua gratidão ajudando com pequenos serviços. “Quando eles iam fazer festa junina, a canjica quem fazia era eu. Ali embaixo tem outro fogãozão de lenha. O padre me dava um caldeirão desse tamanho e o povo da conferência comprava os pacotes de canjica. Eu sentava a lenha nesse fogão e fazia aquela baciona de canjica pra vender na festa junina. Eu não ganhava dinheiro com isso não, eu dava. Eles dão cesta básica todo mês, eles ajudam, então cobrar pra quê?”, conta Zé Brito.

No dia em que conheci o casal, o portão da casa deles estava aberto. No chão do quintal estavam centenas de frutos de urucum recém cortados do pé. Jovelina e Zé Brito estavam sentados em um banco feito com uma tábua de madeira apoiada em três pequenos pilares de tijolos. Os vizinhos que tinham colhido os frutos para o casal estavam no quintal para um dedo de prosa. Mais tarde fui entender que a casa de paredes lilás e janelas verdes era o ponto de encontro da rua. Zé Brito não me deixa mentir: “Não tem vizinho nenhum ruim pra mim, todos são bons. Aqui fica cheio de gente todo dia. Aqui vem menino, mulher, de tudo quanto é sítio. A casa que o padre vinha era aqui. Ele celebrou missa pra gente aqui dentro de casa”.

A Cidade Ozanam já foi citada por Monteiro Lobato, criador de obras maestras – e opiniões pra lá de preconceituosas. “Se as fábricas industrializam o línter [fibra de algodão], por que não hão as cidades de ‘humanizar’ a mendicalha (...) o línter humano será retirado da cidade e localizado na verdadeira usina de transformar mendigos em gente, que é a Cidade Ozanam”, escreveu em um artigo publicado em 1938.
A foto mostra as casinhas enfileiradas do bairro Cidade Ozanam. As casas são brancas, com detalhes verdes e telhado de cerâmica. Em frente a elas, uma calçada gramada.

Obra de caridade, recurso de fé

Não são apenas os moradores da Cidade Ozanam que se beneficiam das obras de caridade idealizadas pela Sociedade São Vicente de Paulo. Em 1959, foi construída uma Instituição de Longa Permanência para Idosos, a Casa do Ancião Chichico Azevedo. O espaço, que tem capacidade para 90 pessoas, atende hoje 57 idosos e idosas.

Um dos critérios mais importantes para que a Instituição conceda a assistência, além da avaliação socioeconômica da família, é garantir que a demanda venha do próprio idoso. “Ele tem que querer, você não pode forçar um idoso a vir. Esse desejo tem que partir dele”, explica a gerente geral da Casa, Cláudia Lopes Soares. Uma vez no local, o idoso conta com o amparo de uma equipe multidisciplinar composta por 59 profissionais, entre enfermeiras, assistentes sociais, psicólogas, fisioterapeutas e nutricionistas.

Uma das moradoras do local é Ana Odite da Rosa Pires, 83 anos. Durante a pandemia da Covid-19, o espaço ficou fechado para visitantes e familiares, mas sua sobrinha Nanci Zocratto Gonçalves acompanhou a rotina no local por meio do contato constante com os profissionais de saúde. “Ela gosta muito de colorir. Outro dia a psicóloga até me pediu: ‘os lápis que a gente tem aqui a gente ganha de doação, não são muito bons. Compra uma caixa de lápis pra ela’. Aí eu levei. Ela adora”. Nanci vai ao local pelo menos uma vez por semana. Mesmo quando não pode entrar no espaço, ela consegue conversar com a tia a distância. “Sabe aquela rampa na entrada? Ela fica ali, onde tem aquela varandinha, e eu fico do lado de fora”.

Nanci conta que a própria tia pediu para ser levada a um lar de idosos. Após um diagnóstico de demência, a família intensificou a busca por uma instituição, sem muito sucesso. Nanci já tinha pensado em deixar o emprego para cuidar da sua tia em tempo integral quando, em 2018, recebeu uma ligação sobre a vaga na Casa do Ancião. Saber que sua tia está em um espaço que oferece atenção 24 horas por dia a deixa mais tranquila. “Nos últimos tempos ela teve duas quedas e tinha gente lá. Imagina se ela tivesse caído sozinha dentro de casa?”, reflete.

Além das atividades cotidianas e das oficinas realizadas pela equipe sobre temas como saúde e alimentação, os funcionários promovem eventos como Natal, festa junina e parabéns para os aniversariantes do mês. Os idosos que moram na Casa também fazem sua parte para agitar o espaço. A auxiliar administrativa Sônia Maria Rezende Dias é a funcionária mais antiga do local, com 29 anos de serviço, e já viveu situações inesperadas. “Já teve um casamento de dois idosos lá dentro. Eles se conheceram e se apaixonaram. Ficavam sozinhos de lá para cá. Aí criou aquela amizade, né? Aquele vínculo, e resolveram fazer o casamento. Ele faleceu, mas ela tá lá até hoje”.

A foto mostra Claudia Lopes Soares, uma mulher branca, de cabelos curtos e grisalhos. Ela usa um óculos preto, uma camiseta preta e um longo colar.

Cláudia Lopes Soares, gerente geral da Casa do Ancião Chichico Azevedo.

Outro espaço importante que compõe as obras de caridade da Sociedade São Vicente de Paulo na região é a Creche Odete Valadares. Fundada em 1984, a creche atende 155 crianças na faixa etária de zero a seis anos de famílias que moram ou trabalham no bairro e na região.

O principal critério para acessar a creche é, como em todos os espaços da Sociedade São Vicente de Paulo, a situação socioeconômica da família. Na sala de aula, porém, existem outras questões em jogo. “Tem aquelas crianças realmente vulneráveis financeiramente, mas tem outras que a vulnerabilidade está ligada à questão afetiva. São crianças com pais separados, ou criadas pela avó, ou que têm mães que batem nelas. A gente percebe isso, essa violência, essa falta de carinho mesmo. Então, quando elas chegam aqui, a nossa missão é tratá-las da melhor maneira possível”, explica a coordenadora pedagógica da Creche Odete Valadares, Cristiana Duarte de Souza.

A foto mostra Cristina Duarte de Souza, uma mulher branca, de cabelos loiros e longos. Ela usa uma blusa preta e um óculos de grau preto.

Cristina Duarte de Souza, coordenadora pedagógica da Creche Odete Valadares.

A proposta pedagógica da creche está atrelada às proposições da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e às diretrizes da Sociedade São Vicente de Paulo. As atividades desenvolvidas, segundo Cristiana, são pautadas nas interações e no brincar, tendo a criança como centralidade. “Pensam muito na questão do currículo, em ter aquele portfólio de final de ano cheio de atividade escrita, e esquecem que o mais importante é você enxergar, escutar o que a criança tem para dizer.”

Cristiana lembra da vez em que receberam uma ligação sobre um aluno enviado pelo Conselho Tutelar. “Me ligaram falando ‘Oh, prepare-se, porque você vai começar a viver um inferno. Ele vai quebrar sua escola inteira. A equipe toda se reuniu e falou ‘vai vir um desafio, mas nós vamos conseguir’”. No último ano de estudos, a criança começou a esquecer suas coisas na sala de aula. “Ele deixava um tênis, uma blusa… para poder voltar pra buscar, né? São sinais. Ele não queria ir embora.”

A foto mostra uma escola de telhado alaranjado, paredes verde limão, e portas e janelas emolduradas com tinta colorida. A rampa de acesso a escola, também verde limão, tem canteiros floridos. O chão é de cimento e a escola está cercada por grades verdes. Ao fundo, uma torre quadrada revestida com cerâmicas brancas. Na ponta da torre, uma pequena construção rosa com uma cruz no teto.

Fachada da Creche Odete Valadares. Ao fundo, a Paróquia São Vicente de Paulo.

Função social

Apesar dos serviços essenciais fornecidos à população mais vulnerável, existe um grande interesse no território por parte do setor imobiliário. “Já tivemos muita pressão, pessoas oferecendo muito dinheiro para comprar os imóveis”, conta Lucas Natalio. A maior parte das ofertas são de construtoras, mas a Sociedade São Vicente de Paulo já recebeu propostas de pessoas interessadas em comprar as casinhas, inclusive pessoas que moravam nas casinhas.

“Nós nunca tivemos o interesse em avançar com essas conversas justamente por ser uma obra de caridade idealizada e sonhada por tantos anos, né? E que atende uma quantidade enorme de famílias. Então nós nunca abrimos pra negociação, justamente pela nossa questão social mesmo. A gente precisa desse espaço pra cumprir o nosso dever vicentino”, afirma Lucas. O terreno e as obras construídas no local, segundo o diretor, não servem à especulação. Sua função social é servir aos mais necessitados.

O interesse em comprar ou alugar um imóvel também vem de pessoas comuns. Zé Brito conta que, vez ou outra, passa alguém na porta da sua casa perguntando como faz para morar no bairro. “Às vezes eu tô sentado lá fora e passa alguém ‘aí não tem casinha pra alugar não?’, e eu falo ‘ô, cumadre, ninguém aluga isso aqui não’. Aí pergunta ‘e como é que o senhor mora aqui?’, ‘eles deram pra gente morar’”.

"Nós nunca abrimos pra negociação, justamente pela nossa questão social mesmo. A gente precisa desse espaço pra cumprir o nosso dever vicentino", afirma Lucas. O terreno e as obras construídas no local, segundo o diretor, não servem à especulação. Sua função social é servir aos mais necessitados.

A Cidade Ozanam, na verdade, quase foi maior. A construção do espaço iria acontecer por etapas, mas grande parte do terreno de 98.032 metros quadrados doado pela Prefeitura acabou desapropriado pela falta de uso imediato. Uma das obras realizadas onde as próximas etapas da Cidade Ozanam seriam executadas foi a construção da avenida Cristiano Machado, na década de 1950, que cortou o terreno ao meio.

Apesar de o projeto original da Cidade Ozanam não ter sido finalizado, alguns espaços foram construídos ao longo do tempo, como galpões multiusos. Hoje em dia, alguns deles são “emprestados” para a realização de projetos educacionais e culturais. O espaço do Centro Cultural Usina de Cultura, por exemplo, está cedido à Prefeitura.

O bairro foi se apequenando e, em 1975, um decreto da Prefeitura modificou o seu nome de Cidade Ozanam para Vila Ipiranga. O seu atual tamanho parece não interferir nas características que o bairro cultiva. Ou talvez seja exatamente por isso que elas permanecem intactas. Em um passeio por ali, há algumas semanas, vi duas cadeiras de madeira embaixo da janela de uma casa, próxima à rotatória. O dia estava chuvoso, mas as cadeiras esperavam por seus donos em um hábito comum daqueles lugares onde as coisas parecem não ter pressa: sentar na calçada para observar o movimento.

“Às vezes eu tô sentado lá fora e passa alguém 'aí não tem casinha pra alugar não?', e eu falo ‘ô, cumadre, ninguém aluga isso aqui não’. Aí pergunta ‘e como é que o senhor mora aqui?’, eles deram pra gente morar’”.

A foto mostra uma senhora de óculos, blusa listrada de branco e vermelho, bermuda azul e chinelo azul. Ao seu lado, um senhor de regata e calça cinza. Os dois estão sentados em um banco formado por uma tábua de madeira apoiada em três pilares de tijolos. Entre os dois, uma bengala. Ao lado da senhora, uma vassoura de cerdas veres e amarelas. A fundo, uma parede lilás e as grades de uma janela verde. No chão de cimento, galhos de frutos de urucum.

Jovelina Alves Martins e José Martins Alves, o Zé Brito.

  • JULIANA AFONSO

    Jornalista e mestre em Escrita Criativa. Escreve sobre viagens, cultura, política e direitos humanos. Mora no Carlos Prates, mas passou a adolescência "pescando" no 8103 e se perdendo pelo Cidade Ozanam para voltar pra casa.

  • BRUNA BRANDÃO

    Fotógrafa e documentarista. Entusiasta de viagens pelo Brasil, das quais escreve guias sinceros sobre música, festas e gastronomia. Mora na região da Pampulha e sente saudades de quando o 5106 era o 2004!